Título: O verdadeiro infrator
Autor: RODRIGO TERRA
Fonte: O Globo, 14/04/2005, Opinião, p. 7

Adecisão da 4ª Câmara Cível ainda não anulou multa alguma; a liminar limitou-se a suspender a validade dos autos de infração lavrados anteriormente a 15 de julho de 2004, quando a administração pública exigia o cumprimento da pena (pagamento da multa) antes de decidir se o suposto infrator era culpado. A sentença definitiva do caso é que decidirá se anula a punição sem defesa prévia. Até lá, ninguém poderá ser punido nestas condições.

A ação coletiva do Ministério Público foi fundamentada na jurisprudência do STJ que tem consolidado a orientação de que o Código de Trânsito Brasileiro prevê a notificação do condutor antes de apená-lo, o que é compatível com a garantia individual fundamental da ampla defesa e do contraditório. Logo, em vez de restringir a quem pôde bancar as despesas do processo até Brasília os efeitos da Constituição, da lei e da jurisprudência do STJ, o MP garantiu a todos em situação similar acesso à Justiça.

Afinal, a lei é para todos e, sobretudo, para a administração pública que, punindo sem defesa para arrecadar açodadamente, fulmina o espírito do legislador da Lei da Circulação, contaminando a legitimidade de que deve se revestir a atuação da autoridade de trânsito. Se a multa é aplicada para arrecadar e não educar, o condutor percebe que poderá reaver o que pagar e, por outro lado, não alterar o seu comportamento no trânsito.

Pelo sistema adotado no estado, quem decidia que alguém era culpado para puni-lo e gerar a arrecadação era o guarda; a falha era generalizada e implicava a punição deliberada de, também, quem poderia não ser infrator. Aliás, a alteração da forma de autuar a partir de julho de 2004 não corrigiu o procedimento. Padronizando a rejeição da defesa em formulários de múltipla escolha, a administração viola outro preceito constitucional, o da motivação das decisões, reduzindo a letra morta outra garantia individual fundamental.

Não é à toa que estatísticas registram recordes sucessivos de acidentes com morte e mutilação no trânsito, frustrando a expectativa legítima do legislador e, com maior razão, da sociedade, quanto à redução dos índices com a vigência do Código: afinal, se a administração passa o rolo compressor para aumentar a sua arrecadação em cerca de 300% desde o advento da lei, o estado das esburacadas vias públicas desprovidas da sinalização adequada e segurança, além da falta de campanhas de educação no trânsito sugerem que o recurso correspondente não é devidamente aplicado.

Finalmente, com o sistema que a Justiça quer corrigir, o real infrator premiado não é o que não tenha pagado a multa, por sabê-la indevida, mesmo impedido de fazer a vistoria e regularizar a situação do seu veículo, condicionamento que o STJ também já declarou inconstitucional. Aliás, quem já pagou poderá, mediante simples requerimento, após a sentença definitiva, ser restituído em dobro. A administração é que não deve nem pode exigir o cumprimento da lei se é a primeira a desrespeitá-la e, se temos lei, somente se os seus efeitos forem sentidos por todos é que poderemos nos orgulhar de dizer que somos um país.

RODRIGO TERRA é promotor.