Título: É RUIM PARA A EDUCAÇÃO
Autor: FERNANDO PEDROSA
Fonte: O Globo, 14/04/2005, Opinião, p. 7

Adiscussão que monopolizou a atenção dos profissionais de trânsito de todo o país e parte da sociedade foi a recente decisão da Justiça do Rio de Janeiro que cancelou as multas aplicadas entre 1998 e 2004, pela inobservância de um preceito constitucional: a defesa prévia.

Sem entrar no mérito dessa importante questão ¿ até porque me falta o necessário conhecimento jurídico ¿- acho oportuno destacar a influência de tal medida no processo educativo e nas ações de prevenção e redução de acidentes de trânsito que, no Brasil, atingem índices catastróficos e cifras bilionárias. Com uma frota de 36 milhões de veículos, a relação entre o número de acidentes e a população é 8 vezes superior à de países mais populosos e com maior número de carros em circulação. Vivemos uma tragédia recorrente que atinge a todos independentemente de classe social, raça e condição econômica. Uma tragédia que apesar de sua dramaticidade ainda revela uma outra face cruel: o conformismo.

Diferentemente do que muitos ainda pensam, os acidentes de trânsito são previsíveis e por isso mesmo evitáveis. Na origem de toda a colisão ou atropelamento que ceifa a vida de milhares de pessoas, interrompendo sonhos e esperanças, há infrações de trânsito muito graves como ultrapassagem perigosa, excesso de velocidade e desrespeito à sinalização que, se não tivessem culminado em um acidente, teriam passado absolutamente sem punição.

Estudos da Organização Mundial de Saúde ¿- braço da ONU voltada para as questões de saúde pública no mundo ¿- indicam que o acidente de trânsito já é considerado pelos médicos como uma grave doença social. Em 1999 cerca de 1.200 mil pessoas morreram em todo o mundo em decorrência desse tipo de acidente, alcançando a nona posição no ranking de todas as causas. O mesmo estudo faz uma previsão aterradora. Se governos, autoridades e a própria sociedade não assumirem essa questão como um compromisso prioritário, a ¿tragédia sob rodas¿ vai alcançar a terceira colocação em 2020, perdendo apenas para as doenças do coração e o câncer.

No caso brasileiro, o trânsito já é de longe a principal causa da morte prematura de jovens entre 15 e 35 anos, exatamente a faixa etária mais produtiva. Anualmente, mais de 30 mil pessoas morrem e outras 400 mil ficam feridas ¿ muitas inválidas pelo resto da vida ¿- em ocorrências de trânsito que custam ao país mais de R$5 bilhões em despesas médicas, seguros, indenizações e paralisação de atividades produtivas. Ainda por cima, nossa natureza pacífica e conciliadora nos leva a tolerar nos outros o desprezo pelas regras de trânsito e a admitir condutas irregulares, agressivas e até criminosas de alguns poucos condutores que, entretanto, exibem um fabuloso poder letal. Essa nossa característica faz com que a tragédia no dia-a-dia das ruas e estradas brasileiras seja encarada com inadequada naturalidade e incompreensível acomodação, mascarando o potencial agressivo dos infratores que matam e ferem como se fora uma simples e inevitável ¿fatalidade¿, estimulando assim a impunidade.

Para mudar esse quadro indesejável é preciso uma equilibrada combinação de alguns fatores essenciais, que envolvam a engenharia de tráfego e automotiva, que nos ofereça vias e veículos cada vez mais seguros; a educação para a cidadania no trânsito, que aumente nossa consciência sobre os riscos; o esforço legal, que conceba regras claras e aplicáveis; a fiscalização pontual, com eficácia e eficiência; o direito à defesa e a eventual aplicação das penas aos infratores.

É esperança de todos os que trabalham no combate à violência no trânsito que haja uma mudança da situação que hoje vivemos. Sem dúvida isso é possível desde que as condições de circulação em segurança sejam observadas e que as sanções previstas em lei sejam executadas com justiça, responsabilidade, celeridade e o devido rigor que a gravidade do tema exige.

No âmago do embate jurídico que se estabeleceu com a decisão da Justiça de cancelar as multas estão o futuro e o nível de qualidade dessa delicada relação homem-veículo, cuja convivência harmônica depende essencialmente do respeito à lei e da credibilidade das instituições que zelam pela sua aplicação.

Luz e sabedoria aos que vão dar a decisão final. Que a análise da matéria seja criteriosa e se estenda à aplicação dos recursos oriundos das multas de trânsito que, também por exigência legal, devem ser exclusivamente aplicados em fiscalização, policiamento e educação de trânsito.

Que o acidente de trânsito, fruto da infração que não deu certo, transforme-se na condução segura e responsável que pode salvar vidas.

FERNANDO PEDROSA é coordenador do Programa de Redução de Acidentes no Trânsito do Ministério dos Transportes (Pare) para as regiões Sul e Sudeste.