Título: UE X EUA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 16/04/2005, O País, p. 4

ISTAMBUL, Turquia. Num momento em que a Turquia se vê diante de variadas pressões políticas no processo de entrar na Comunidade Européia, três dos mais influentes intelectuais franceses da atualidade expressaram seu apoio na sessão de ontem do simpósio sobre o Islã promovido aqui na Turquia pela Academia da Latinidade, cujo secretário-geral é o filósofo brasileiro Candido Mendes.

O filósofo Jean Baudrillard e os sociólogos Alain Touraine e Edgar Morin defenderam a participação da Turquia na Comunidade Européia com argumentos históricos e culturais, mas, sobretudo, políticos.

Todos enfatizaram a necessidade de a Comunidade Européia ser vista menos como um projeto econômico ou geográfico, e mais ¿civilizador¿, na definição de Morin. Nessa definição, está implícita também a necessidade de que a Europa se diferencie dos Estados Unidos e possa, assim, ser uma alternativa política à hegemonia americana no mundo atual.

Já Alain Touraine avalia que raramente há projetos políticos como esse da entrada da Turquia na Comunidade européia, que colocam em jogo valores fundamentais da civilização.

Segundo ele, essa ação conjunta de países que se comprometem a respeitar a pluralidade de culturas ¿é a única maneira de evitar o que chamamos de choque de civilizações e uma propagação da guerra de religiões¿.

Touraine ressalta que a idéia de Europa que se desenvolve é a de tornar homogênea a região, reduzindo as zonas de pobreza num sistema de mútua ajuda, o que dá uma dimensão política maior ao projeto e à entrada da Turquia nele.

Também a socióloga Nilüfer Gole, diretora da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Istambul, considera que ¿orientalizar, islamizar, barbarizar¿ a Turquia para negar sua entrada na Comunidade Européia reduz a Europa a apenas uma identidade, deixando de ser um projeto.

Ela lembra que a candidatura da Turquia só foi possível através da renúncia a uma identidade pura, seja em termos nacionalistas ou religiosos. Ao mesmo tempo, exige que a Europa se redefina e obrigue-se a uma separação cultural e religiosa.

Para se ter uma idéia da dimensão dessa questão religiosa, é bom lembrar que países como Portugal, Espanha, Itália e Polônia querem que a constituição européia tenha uma definição pelo cristianismo. O governo francês de Jacques Chirac, que é favorável à entrada da Turquia, embora a maioria dos franceses seja contrária, opõe-se a essa proposição.

Edgar Morin lembrou que vários partidos democrata-cristãos da Europa, juntamente com o Vaticano, rejeitam a Turquia para manter o mito que liga a Europa ao cristianismo. O esforço turco para separar a religião do Estado foi citado por todos os palestrantes como sinal de amadurecimento democrático que merece ser premiado com a entrada na Comunidade Européia.

Alain Touraine chega a dizer que a importância da Turquia para a Europa é que, mesmo enfrentando conflitos graves, ela conseguiu combinar a laicidade e as crenças religiosas, que encontraram expressões políticas fortes, a começar pelo partido majoritário, o da Justiça e do Desenvolvimento.

Edgar Morin lembrou que a democratização da Turquia é um processo em andamento, e que as falhas que ainda existem devem ser reparadas, mas sem que signifiquem sua desclassificação.

A questão dos curdos, que são reprimidos e não são reconhecidos como povo pela Turquia, é apontada por Morin como um ponto pendente no processo democrático turco. Mas ele lembra que países democráticos como a Espanha têm questões como a dos bascos, assim como a França praticou a tortura na Argélia. Morin citou ainda os Estados Unidos no Iraque e a violência da repressão inglesa na questão irlandesa como exemplos de falhas do sistema democrático que não transformaram aqueles países em párias.

A professora Nilüfer Gole destacou a movimentação de associações de direitos humanos que acabou com a pena de morte no país, um passo para adequar as leis da Turquia às dos demais países europeus.

A começar pela afirmação do título de sua palestra ¿¿A Turquia é européia¿¿ Edgar Morin ressaltou a forte presença européia no Império Otomano desde o século XIV, até o nascimento da Turquia moderna, logo após a Primeira Guerra Mundial. O interessante é que, na análise de Morin, o império europeu deixou sua marca ¿principalmente através da tolerância religiosa¿. Ele remarca que vários ministros do Império Otomano tinham origem cristã e às vezes judia.

Ontem mesmo, no entanto, o jornal ¿New Anatolian¿, um dos dois em língua inglesa da Turquia, publicava um artigo do historiador inglês da Universidade de Oxford, Timothy Garton Ash, em que ele culpa o antigo Império Otomano pela maioria dos problemas europeus da atualidade, causados por ¿uma intrincada rede de etnias, políticas e religiões deixada para trás¿.

Com o humor característico dos ingleses, Garton Ash afirma que ¿se a Europa continua a se alargar, pode acabar terminando como o Império Otomano¿. Ele diz que a proposta de aceitar a Turquia é ¿fazer com que o império europeu pós-moderno ou neo-medieval absorva os restos do império de Suleiman (sultão conhecido como o Magnífico, que no século XVI expandiu o Império Otomano)¿.

O historiador inglês de Oxford faz uma relação dos países que hoje existem no território do antigo império, e diz que eles estão ligados sempre a problemas políticos graves: a região dos Bálcãs, Iraque, Síria, Líbano, Palestina e Israel. E termina dizendo: ¿Pelos problemas causados pela presença de Israel no Oriente Médio, só podemos culpar nós mesmos e Hitler. Mas o resto é graças a Suleiman¿. (Continua amanhã)