Título: PARA HISTORIADORES, PAÍS DEVE A NEGROS DO BRASIL
Autor: Luciana Brafman
Fonte: O Globo, 16/04/2005, O País, p. 10

Especialistas elogiam pedido de perdão de Lula a africanos, mas dizem que a questão nacional também é importante

Elogiado por historiadores, o ato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de pedir desculpas aos escravos africanos no Senegal provocou uma discussão que vai além da responsabilidade do Brasil por um passado escravocrata e violento. Os especialistas afirmam que existe uma dívida contemporânea da sociedade e do Estado com os negros brasileiros, ainda hoje discriminados.

O historiador Alberto da Costa e Silva lembra que o regime escravocrata existe na humanidade desde o período neolítico, mas ressalta que a escravidão no Brasil foi especialmente perversa porque a questão era racial: escravo era sinônimo de negro.

¿ O gesto do presidente Lula foi correto. Não podemos deixar de ter remorsos e devemos pedir desculpas. O problema é que a responsabilidade é sempre histórica, distante. Mais importante é pedir desculpas para os que estão e estarão sempre aqui, no nosso território. Temos responsabilidade pelas mazelas do presente ¿ diz o historiador.

Brasil participou intensamente do tráfico

Segundo Alberto da Costa e Silva, o Brasil recebeu a sexta parte de todos os escravos que a África mandou para o mundo. Ele conta que os brasileiros se envolveram intensamente com o tráfico de escravos, tendo sido os maiores comerciantes na África por cerca de um século.

O historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor de História do Brasil na Sorbonne, na França, e autor do livro ¿O trato dos viventes¿, também cita o envolvimento direto dos colonos brasileiros no continente africano para comércio de negros e pilhagem.

A participação no tráfico, e não só na utilização da mão-de-obra, é um dos argumentos utilizados para elogiar a atitude do presidente Lula:

¿ Temos responsabilidade direta sobre isso. O Brasil foi o único país americano que participou da pilhagem da África. O presidente fez o certo ¿ diz Alencastro, lembrando que Lula já tinha falado sobre a questão quando esteve em Angola, em 2003, ao contrário dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e José Sarney, que também visitaram o país em seus mandatos. ¿ No centenário da abolição, em 1988, Sarney fez um discurso corajoso no Brasil, admitindo que o país tem uma dívida com os negros brasileiros.

¿O passado precisa agora ser consertado¿, diz historiador

Eduardo Silva, historiador da Casa de Ruy Barbosa, explica que do século XVI ao XIX o sistema aceito no mundo era o escravocrata e que, por isso, há quem alegue que não haveria motivo para se pedir desculpas. Mas o autor de ¿O Príncipe do povo¿ (história do príncipe africano Dom Obá II, que viveu como escravo no Brasil), afirma que o pedido de desculpas de Lula é importante não pelo passado, e sim pelo que representa atualmente.

¿ Tem importância para o que estamos discutindo hoje no país. Para o racismo, por exemplo. O discurso de Lula marca uma ruptura: ele está dizendo que não somos mais o que fomos, que o passado precisa agora ser consertado.

Para Isabel Lustosa, também historiadora da Casa de Ruy Barbosa e autora do livro infantil a ¿História dos escravos¿, uma questão fundamental é que a abolição no Brasil foi feita sem uma política de incorporação dos negros à sociedade, dificuldade enfrentada ainda hoje.

¿ Naquela época, depois de libertos, os escravos não tinham para onde ir. Seu destino foi a periferia. É uma dívida do Estado brasileiro.

Quanto ao passado, Isabel diz que a sociedade deve, sim, pedir desculpas aos negros africanos, mas deve sobretudo agradecer pelo que fizeram pela cultura nacional, miscigenada, original e rica.