Título: DOENÇAS RURAIS INVADEM CIDADES
Autor: Letícia Helena
Fonte: O Globo, 18/04/2005, O País, p. 3

Moléstias crescem em grandes centros por causa de urbanização desenfreada

Osurto de mal de Chagas em Santa Catarina acendeu o sinal amarelo nos serviços de controle epidemiológico do país: doenças associadas às áreas rurais estão se tornando cada vez mais comuns nas grandes cidades, mostram dados do Ministério da Saúde. A tripanossomíase, nome científico da moléstia transmitida pelo barbeiro, atingiu 3.075 brasileiros em 2004 ¿ em 2000, eram 1.154 casos. Os números da leishmaniose visceral também são alarmantes. A doença, conhecida como calazar ou febre dundun, é causada por um protozoário e transmitida por um mosquito. Em cinco anos, o número de casos passou de 924 (em 2000) para 2.291 (2004). Para a Organização Pan-Americana de Saúde, na periferia da maioria das capitais do Nordeste, a leishmaniose já é uma endemia.

E não são os únicos casos. Doenças como a amebíase e a shiguelose ¿ infecções causadas por parasitas, protozoários ou bactérias ¿ e a leptospirose também apresentam números crescentes nos últimos cinco anos. A razão é simples: o desmatamento desordenado, a ocupação de áreas de floresta com moradias e, principalmente, a urbanização desenfreada estão criando um país de jecas-tatus.

¿ O processo de desenvolvimento brasileiro nos últimos anos torna quase inevitável que esse tipo de coisa aconteça. A urbanização vem acontecendo em ritmo acelerado, mas com uma total falta de estrutura, principalmente no que se refere ao saneamento básico ¿ diz o epidemiologista Eduardo Costa, da Fiocruz. ¿ Sem falar que as cidades estão se expandindo para áreas de mata, fazendo com que animais hospedeiros ou transmissores de doenças se aproximem das casas e acabem contaminando os homens.

Esquistossomose em pleno Rio de Janeiro

A referência ao personagem de Monteiro Lobato faz sentido. Mesmo sem apresentar números alarmantes, a ancilostomose, a infecção causada por vermes contraída por Jeca Tatu, ainda é endêmica em algumas regiões do país. No nordeste de Minas Gerais, por exemplo, pesquisadores da Fiocruz estimam que cerca de 80% da população estejam infectados.

E mesmo doenças em queda livre no país, como a esquistossomose, ainda apresentam focos em lugares inesperados. No Alto da Boa Vista, no Rio, por exemplo, foram registrados 260 casos desde 1999. A moléstia, causada por um parasita que tem como principal hospedeiro um caramujo, tem como fonte de disseminação o Rio da Cachoeira, que corta cinco comunidades pobres. Foi lavando roupa no rio que a balconista Maria de Fátima, de 27 anos, contraiu a doença. Nascida na Paraíba, a moça mora no Rio há pouco mais de dois anos e acreditava que a esquistossomose era uma doença extinta.

¿ Tive febre, dor de cabeça e náuseas. No posto de saúde, o médico nem hesitou: como moro aqui, ele logo identificou a doença. Na escola, a gente aprendia aquela coisa do caramujo, mas não imaginava que isso existia. Ainda mais numa cidade grande ¿ conta ela, sem saber que, no ano passado, 292 pessoas contraíram esquistossomose na Região Sudeste, a maioria em áreas urbanas.

Leptospirose cresce nas grandes cidades

E é justamente nas cidades grandes que outras doenças, como a leptospirose, vêm crescendo. Transmitida pela urina do rato, a moléstia, em sua forma icterohemorrágica ¿ que provoca hemorragia no interior dos tecidos e pode até matar ¿ passou de 69 casos registrados em 2000 para 492 em 2004. Surtos de leptospirose são comuns em áreas atingidas por enchentes. Morador em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, o taxista Raimundo Fernandes de Souza, de 47 anos, teve a doença no ano passado.

¿ Se as ruas fossem limpas e o lixo recolhido direito não dava tanto rato aqui. Felizmente, descobri rápido que tinha a doença e pude fazer o tratamento adequado. Se a água voltar a subir, estaremos correndo o mesmo risco.

Um risco que pode ser cada vez maior quando se observa que casos de doenças típicas de matas nativas ¿ como a malária causada pelo protozoário Plasmodium falciparum, que é a forma mais grave da moléstia ¿ estão caindo nas bordas da Floresta Amazônica e crescendo na Região Sudeste. Em 2000, o Ministério da Saúde registrou 23 casos entre São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. Em 2004, foram 43.

¿ Nas matas, a malária circula entre os macacos e infecta o homem que entra para caçar ou para cortar lenha, por exemplo. Se cresce nas cidades é sinal de que as casas estão cada vez mais perto da floresta. Com isso, você pode passar a ter o ciclo completo da doença em áreas urbanas. O desequilíbrio ecológico tem conseqüências quase imediatas na saúde da população ¿ observa Eduardo Costa.