Título: LULA E A IGREJA
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Globo, 18/04/2005, Opinião, p. 7
Lula não tem tido trégua. Aos desconfortos e derrotas para o PP e o PMDB, o atual governo entra agora numa discussão teológica, que de religiosa tem somente a aparência. Três cardeais brasileiros emitiram opiniões sobre o presidente Lula que, divergentes entre si, exibem discordâncias com os rumos da situação atual. Declarações cardinalícias não são ingênuas. Elas veiculam mensagens passíveis de várias leituras, todas elas, no entanto, relacionadas com a política brasileira.
Tudo começou com uma afirmação de Dom Eusébio Scheid, que, ao chegar a Roma, declarou: ¿Lula não é católico, mas caótico¿, acrescentando que ele e Fidel Castro são ¿dois bobocas¿. A Igreja se encontra na raiz da criação do PT e, durante muitos anos, a CNBB apoiou o partido em tudo que fazia. As Comunidades Eclesiais de Base tinham um claro posicionamento político, além das alas mais radicais da Igreja apoiarem os propósitos revolucionários do MST via CPT. Até uma forma própria de teologia, impregnada de marxismo, foi criada: a Teologia de Libertação. A vitória petista nas últimas eleições foi saudada como a aurora de uma grande mudança. Lula, neste sentido, é um ¿católico¿, fruto desse contexto político-cultural.
Contudo, de repente, Lula deixa de ser ¿católico¿. Essa simples declaração é bombástica por sinalizar uma ruptura pública com o que, até agora, era um casamento que parecia indissolúvel. O divórcio foi, porém, proposto. Logo, a Teologia da Libertação não expressaria mais uma posição quase-oficial de uma parte importante do clero brasileiro; as invasões de propriedades e seqüestros do MST não receberiam mais a bênção religiosa e o PT deixaria de representar a mudança. Suas contradições e incoerências são tantas que a denominação de ¿caótica¿ seria apenas a constatação de uma situação de fato. Ademais, embora possamos discordar de que Lula e Fidel Castro sejam ¿bobocas¿ por serem muito astutos, devemos entender a declaração num sentido mais apropriado, ou seja, eles são bobos se pensam que nos enganam com suas alianças e afinidades.
A reação de Dom Cláudio Hummes não tardou, pois esse cardeal tem uma longa história de afinidades com o MST, a Teologia da Libertação e o PT. Os representantes dessas posições não cessam de aclamá-lo como potencial Papa. Quando Dom Cláudio declara que Lula é ¿católico a seu modo¿, ele está simplesmente querendo dizer que ele se afina com as posições dessa corrente esquerdista da Igreja brasileira. Seu recado a Dom Eusébio foi: não concordo com sua crítica em relação a essa que foi, durante um bom tempo, a postura dominante da Igreja brasileira. Estamos no meio da partida.
Lula, não resistindo a fazer parte desse jogo, faz uma peregrinação por locais sagrados em Roma, com o intuito de fortalecer a posição de Dom Cláudio. Olhem para mim! Sou franciscano por opção, embora não vista a batina! Eis que, num típico acesso verbal, o presidente escorrega novamente: sou um ¿homem sem pecados¿. Teologicamente, trata-se de um absurdo, pois, segundo o cristianismo, todo indivíduo já é pecador no pecado originário, além de transgredir um mandamento religioso por simples ato de pensamento ou de fantasia. Além do mais, se alguém se considera não pecador, é porque já peca por soberba. Na verdade, o que disse Lula foi: sou um santo!
Contudo, um outro jogador, Dom Eugenio Sales, entra na partida e declara: ¿Lula não é cristão-modelo¿. O mundo petista não é mais modelo de cristandade. O que o PT e o governo Lula precisam é rever suas afinidades com o MST, com a Teologia da Libertação e com o marxismo, pois os que têm aderido a esses projetos terminam por abandonar os caminhos do Senhor. Eles são convertidos, mas para o mundo da política e de uma esquerda messiânica. Mais ainda, a recente discussão suscitada pelo atual governo, revisando suas posições relativas ao aborto e às uniões homossexuais, tem um potencial explosivo, pois une virtualmente cardeais das mais diversas orientações. A Igreja pouco avançou em relação aos costumes, permanecendo afastada do que ocorre no mundo. Entretanto, essa confluência entre diferentes fatores indica que o divórcio entre a Igreja e o PT pode ser iminente.