Título: As falhas que livram policiais da punição
Autor: Fábio Vasconcellos
Fonte: O Globo, 17/04/2005, Rio, p. 16
Juíza afirma que perícia quase sempre se restringe ao laudo cadavérico ou a um exame de corpo de delito
Quais os motivos que levam à certeza da impunidade, demonstrada na ação dos policiais suspeitos da chacina da Baixada Fluminense? Eles agiram por volta de 21h, um horário com muito movimento, não se preocuparam em esconder os rostos e ainda retornaram 40 minutos depois aos locais dos crimes para recolher as cápsulas das balas. A indiferença dos criminosos é traduzida também pela tranqüilidade com que horas antes se reuniram numa bar para beber, cantar e planejar o massacre de 29 pessoas. Para juízes, promotores e advogados, a certeza dos autores da chacina de que não seriam punidos é fruto de um processo histórico e vem sendo sustentada por um ciclo vicioso, que começa horas após um crime e vai até os tribunais.
Devido à ausência de provas ou aos indícios pouco consistentes apresentados pela Polícia Civil, os promotores têm dificuldades para levar o inquérito à Justiça. Os juízes, por sua vez, não condenam suspeitos quando há dúvidas em relação à autoria do crime. Diante desse impasse, que não está restrito aos crimes praticados por policiais, tem restado à polícia e ao Ministério Público apenas a ajuda das testemunhas. A colaboração é imprescindível, argumentam promotores e juízes, mas deveria vir acompanhada de provas técnicas, o que aumentaria a possibilidade de condenação dos acusados.
Só prisão em flagrante leva a condenação rápida, diz juíza
Esse quadro é confirmado pela juíza Suimei Cavalieri, assessora da presidência do Tribunal de Justiça. Ela explica que muitos magistrados têm dado a sentença baseando-se principalmente no relato de testemunhas. Suimei, que atuou na Vara Criminal de Nova Iguaçu, Nilópolis e Campo Grande, entre 1994 a 2001, destaca que a ajuda de pessoas que assistiram ao crime, contudo, pode ser prejudicada, já que muitas sofrem pressões e ameaças. A juíza acrescenta que somente nos casos em que houve a prisão em flagrante do criminoso tem sido possível uma condenação rápida:
¿ É muito comum o policial contar que estava num patrulhamento de rotina, quando encontrou um suspeito e houve troca de tiros. Daí em diante, não há mais provas que ajudem no julgamento. A perícia quase sempre se restringe ao laudo cadavérico ou a um exame de corpo de delito. Dessa forma, passamos a depender da ajuda de testemunhas, que podem sofrer pressões de todo tipo.
Professor da UFF e promotor da 2ª Central de Inquéritos do Ministério Público, Denis Aceti concorda com a juíza. Ele conta que grande parte dos inquéritos policiais que chegam à promotoria retorna para as delegacias devido à inconsistência dos dados levantados pela polícia durante as investigações. Nesse vai-e-vem, o crime vai caindo no esquecimento, o que colabora para a demora da apresentação da denúncia à Justiça e, conseqüentemente, da sentença judicial. Aceti acredita que a impunidade percebida pela população ocorre devido aos poucos casos que terminam em condenação.
¿ O número de crimes está acima do que o aparato policial pode investigar. E, mesmo nos casos em que há alguma investigação, o número de condenações é pequeno, já que as provas, quando temos, são fracas. Com quase 90% do que chega a esta promotoria eu não tenho a menor condições de apresentar uma denúncia à Justiça ¿ diz Aceti.
Falhas até mesmo em casos de grande repercussão
Mesmo nos crimes de maior repercussão, a perícia da polícia tem apresentado falhas. A opinião é de peritos que analisaram duas fotos publicadas pelo GLOBO, no dia 7 deste mês, mostrando dois policiais tentando encontrar vestígios em carros que podem ter sido usados pelo bando que matou 29 pessoas em Queimados e Nova Iguaçu. Talvane de Moraes, professor de medicina legal da Universidade Cândido Mendes e ex-diretor de Polícia Técnica do Rio, frisa que na primeira foto (reproduzida acima), o perito da polícia do Rio está sem avental, proteção para cabeça e boca. Além disso, usa luva apenas numa das mãos. Na outra foto (também reproduzida acima), um perito da Polícia Federal está com os equipamentos necessários para o trabalho.
¿ Outro problema nesse caso, e isso ocorre nas duas situações, é que a perícia foi realizada num local aberto, exposto à ventilação. Isso tudo prejudica a coleta de provas, como um fio de cabelo, ou a impressão digital dos suspeitos ¿ afirma Moraes, que comandou a polícia técnica entre 1991 e 1994.
De acordo com o perito Nelson Massini, professor titular de medicina legal da Uerj, o espirro de uma pessoa que esteja perto do veículo já atrapalharia a localização de provas. Ele lembra que, nesse caso, uma análise de DNA dos criminosos estaria prejudicada, já que a saliva alteraria o código genético dos bandidos deixado numa gota de sangue, num fio de cabelo ou numa gota de saliva.
¿ O mais impressionante é que o profissional da primeira foto parece encostar o dedo na porta do veículo. Isso não poderia acontecer, já que é mais uma impressão digital para confundir a investigação ¿ acentua Massini.
Além de problemas no levantamento de provas, o presidente da OAB-RJ, Octávio Gomes, acredita que é preciso também alterar a legislação criminal que, segundo ele, favorece os criminosos. Gomes defende a criação do Juizado de Instrução, que anteciparia o depoimento dos acusados, presos em flagrante ou que tenham confessado o crime. O presidente da OAB-RJ diz que muitas testemunhas desistem de prestar depoimento na Justiça, pois, com o passar dos anos, ou elas esquecem detalhes do crime ou simplesmente desaparecem.
¿A polícia técnica é desestruturada e colabora para a impunidade. Por outro lado, demoramos muito tempo para julgar os crimes. Acho que o Juizado de Instrução reduziria esse tempo para os casos em que o bandido é preso em flagrante. Assim que fosse preso, o criminoso seria levado para a delegacia e, em seguida, para o juiz de instrução, que já daria a sentença. Ou seja, o caso seria resolvido já na fase do inquérito ¿ diz Gomes.
Presidente da OAB-RJ defende alterações na lei
Sobre as mudanças na legislação, o presidente da OAB-RJ cita como exemplo uma revisão no número recursos permitido. Gomes acredita que o excesso de recursos, aliado às brechas com as quais é possível protelar um processo, também colabora para a certeza de impunidade entre as policiais. Ele cobra ainda um sistema de proteção às testemunhas eficaz.
Algumas opiniões do presidente da OAB-RJ não são compartilhadas pelos promotores. Denis Aceti, por exemplo, discorda da idéia de alterar a legislação. Ele também considera correto o número de recursos à disposição dos advogados que defendem os acusados.
¿ Sou contra essas mudanças. O nosso Código Penal é bastante atual e os recursos existem em número satisfatório ¿ afirma Aceti.
Embora admita haver casos de homicídios em que se leva até dez anos para condenar o culpado, o promotor acredita que o prazo do processo não poderia ser reduzido drasticamente, como sugere o presidente da OAB-RJ:
¿ Todo processo tem um tempo necessário, em que o juiz, de forma equilibrada, determina a sentença. É claro que também não concordamos com processos que duram tanto tempo ¿ diz Aceti.