Título: AS TENDAS QUE JÁ DEIXAM SAUDADES NO CENTRO
Autor: Ruben Berta
Fonte: O Globo, 17/04/2005, Rio, p. 20

Hospital de campanha da Marinha, onde pacientes buscam a atenção perdida na rede pública, deve fechar em 45 dias

Ainda não eram 5h do dia 7 de abril quando o mestre-de-obras aposentado Hernandes Botelho do Amaral, de 83 anos, chegou a um dos portões de acesso ao Campo de Santana, no Centro. Nem era sua intenção, mas o hábito de acordar cedo o colocou no primeiro lugar de uma fila que em pouco mais de duas horas já estava com cerca de 200 pessoas. Pela segunda vez em duas semanas, ele foi se consultar no hospital de campanha da Marinha. Assim como cerca de 80% dos pacientes, trouxe, ao menos aparentemente, um pequeno problema. E a busca por uma atenção cada vez mais rara ¿ e com os dias contados ¿ na rede pública de saúde.

¿ Da outra vez, fui no ortopedista ver uma dor nas costas. Ele me receitou o remédio, fui muito bem tratado. Por isso vim aqui de novo, desta vez em busca de um clínico geral. No dia 12, tinha que ir ao PAM (Posto de Atendimento Médico, da prefeitura) Treze de Maio para tentar marcar uma consulta. Mas lá demora no mínimo um mês. É tempo suficiente para eu esquecer com que problema estou ¿ brinca Hernandes.

Mas, no dia 7, o aposentado não deixava a memória titubeante vencer o incômodo. Precisava pôr fim a um formigamento na orelha esquerda que toda manhã insiste em aparecer. A primeira vez em que soube do hospital de campanha foi ¿através de uma propaganda na TV¿ e, depois da consulta bem-sucedida, tentou de novo. Da crise da saúde, que estampou os jornais nas últimas semanas, Hernandes sabe pouco, quase nada na teoria. Mas tem convicção de que a situação não é nada boa:

¿ Não sei se os funcionários não têm estímulo ou não são bem pagos, mas a verdade é que em geral a gente é muito mal atendido. Para mim, a culpa é de todos os governos. Não tem um mais culpado. Sei que, se precisar de uma emergência, tenho um parente que trabalha no Pedro Ernesto e pode me ajudar. Mas lá também está tão complicado...

Enquanto precisa resolver apenas o formigamento, Hernandes aposta na fila do hospital de campanha. Viúvo há menos de um mês, ele agora se concentra na prevenção para evitar sustos. Às 6h, todos já podem entrar no Campo de Santana e às 7h começa a triagem numa das barracas montadas pela Marinha. Sentado, o aposentado espera pouco mais de 40 minutos até ser atendido. Mesmo desde as 3h50m apenas com um cafezinho tomado, ele não se queixa até a consulta com a médica Gabriela Wein.

¿ Mas esse formigamento é só de manhã, não é? E você dorme virado para o lado esquerdo, não é? Acho que está explicado ¿ diz a médica.

Uma atenção a mais, porém, detectou um problema maior. Hernandes é hipertenso e sua pressão estava em 19 por nove no momento da consulta. Sem ligar muito para os remédios, ele admitiu que vinha se esquecendo dos medicamentos e só foi liberado após um comprimido fazer efeito e baixar a sua pressão para 16 por oito.

¿ Não esperava. Problema de pressão tive mesmo naquela época em que peguei um maldito cliente italiano. Ali sim, sofria ¿ reclama o aposentado.

Mas, do hospital de campanha, o aposentado foi encaminhado por uma equipe do HumanizaSUS ao Hospital dos Servidores, onde teve uma consulta na última quarta-feira com um cardiologista. Tudo correu bem e agora ele garante que não larga mais os remédios:

¿ Botei até a caixa perto do sofá para não esquecer.

Em três semanas houve 9.548 atendimentos no Campo de Santana. A clínica médica foi a especialidade mais procurada, com 3.713 consultas, seguida de ortopedia, com 2.331; pronto-tendimento, com 1.253; pediatria, com 1.154; e ginecologia, com 1.097. A média tem se mantido em 600 atendimentos diários. Só nesta última semana foram realizados 1.337 procedimentos como raios X, exames de sangue e nebulização.

¿ Recebemos pacientes graves, mas fica claro que as pessoas estão atrás de atenção, carinho ¿ resume o vice-almirante Setta, diretor de Saúde da Marinha.

Na última terça-feira, o interventor do Ministério da Saúde no Rio, Sérgio Côrtes, anunciou que o Hospital da Marinha deve fechar num prazo de 30 a 45 dias, dependendo apenas do andamento de um projeto com o estado para aumentar em 2.500 consultas diárias o atendimento ambulatorial em todo o estado. Até lá, Hernandes promete voltar mais uma vez:

¿ É uma pena acabar. Mas vou na semana que vem para me consultar com um clínico. O formigamento na minha orelha não pára de me incomodar.