Título: DESAFIOS PARA A IGREJA
Autor: Entrevista : Andreas Englisch
Fonte: O Globo, 18/04/2005, O Mundo, p. 21

A agitação da mídia em torno de determinados cardeais como possíveis sucessores de João Paulo II esquece que num conclave o que está em jogo é a própria Igreja, já que o nome escolhido deverá sê-lo em função das necessidades da mesma Igreja. Naturalmente há diferenças entre os cardeais sobre como fazer frente a tais desafios, o que possibilita a formação de grupos no interior do colégio cardinalício em torno desta ou daquela linha de ação e, por conseqüência, deste ou daquele nome. Porém, fator decisivo vem a ser a própria Igreja neste momento histórico e nesta sociedade atual. Examinemos algumas questões que a desafiam sem pretensão de esgotar o tema. Comecemos pelos desafios externos.

A atual globalização da economia comandada pela eficácia e pelo lucro, sujeita (teoricamente) às leis de mercado, acaba por retroagir sobre a pessoa humana. Esta deixa de ser a meta da organização social e da vida econômica, nacional ou planetariamente considerada. Daí, a insensibilidade das grandes potências, o aumento dos sofrimentos humanos, as guerras provocadas, a situação insolúvel dos países pobres endividados etc. A Igreja deverá continuar sua luta pela justiça e pela paz, sem temer possíveis represálias dos poderosos.

Outro sério desafio representa a proximidade inédita do cristianismo com as grandes tradições religiosas da Humanidade, de modo especial com o islamismo e com as religiões asiáticas (budismo, hinduísmo). Não se trata só de respeitá-las na linha do Concílio Vaticano II, mas de repensar sua própria autocompreensão no amplo horizonte aberto pelo diálogo inter-religioso, que exibe ao cristianismo riquezas até então pouco conhecidas. O desafio das religiões exige também um cristianismo unificado, para ter maior credibilidade, e um esforço ecumênico mais intenso por parte da Igreja Católica e das Igrejas Evangélicas que resulte numa unidade respeitando-se certa diversidade.

A cultura hoje dominante, individualista, consumista, voltada para uma satisfação imediata e insensível à busca do bem comum, das grandes causas, do compromisso social, representa a própria contradição da mensagem cristã, centrada no amor desinteressado pelo semelhante em escala pessoal e estrutural. Simultaneamente, vivemos numa cultura pluralista, nervosa, em constante mudança, que só conhecemos e experimentamos de modo fragmentário e que priva a Igreja de uma linguagem firme e universal para seus pronunciamentos. A irrupção das culturas nativas, étnicas e nacionais, talvez incitadas pela globalização massificante, agrava ainda mais este desafio.

Entre os desafios que surgem do próprio interior da Igreja poderíamos iniciar com a assim chamada descentralização do governo eclesial, anseio claramente expresso pelos participantes do Concílio Vaticano II, que não se concretizou nos anos seguintes. Assim a Cúria Romana deteve um poder excessivo e privou as igrejas locais e seus respectivos responsáveis, os bispos, da justa autonomia que lhes compete como sucessores dos apóstolos. Aqui também se situa a reivindicação das Igrejas não européias de expressarem e viverem a fé cristã a partir de suas próprias culturas, dando lugar a um catolicismo policêntrico e plural (africano, asiático, europeu, latino-americano).

Outro desafio interno diz respeito a uma maior comunhão e participação de todos na mesma Igreja. A Igreja do passado, hierárquica, vertical, que relegava a maioria de seus membros somente à obediência e à passividade recebeu forte corretivo no Vaticano II e hoje encontra séria resistência por parte dos católicos. A participação ativa dos leigos nos pronunciamentos doutrinais ou éticos, bem como na ação missionária da Igreja, goza de sólido respaldo teológico, mas carece ainda de canais institucionais adequados para se concretizar. No fundo se trata do respeito à pessoa humana, à sua subjetividade, à sua situação existencial, o que não implica permitir relativismo e anarquia na Igreja. Alguns cardeais importantes já se manifestaram nestes últimos anos por uma reflexão séria sobre o espaço da mulher na Igreja, a sexualidade humana, a crise matrimonial, os ministérios ordenados ou não, mostrando a pertinência de tais desafios.

Estes são alguns desafios que esperam pelo novo Papa. Certamente há outros e surgirão novos com o tempo. Fundamental, porém, para o cristão é saber que o coração da Igreja não é o Vaticano ou o papa, e sim o Espírito Santo, que a mantém viva e atual pelos séculos apesar da fragilidade e limitação de seus membros que somos todos nós.