Título: O FUTURO DA IGREJA EM VOTAÇÃO
Autor: Luiz Paulo Horta
Fonte: O Globo, 17/04/2005, O Mundo, p. 33

As diferentes correntes que se enfrentam no conclave que escolherá o próximo Papa

Apartir de amanhã, no cenário sublime decorado por Michelangelo, 115 cardeais estarão dedicados à tarefa de escolher um substituto para o Papa João Paulo II. É uma responsabilidade quase esmagadora, uma vez que se trata de influir no destino de um bilhão de seres humanos, espalhados por todo o mundo.

Seguindo a doutrina da Igreja, os cardeais contam, para isso, com a ajuda do Espírito Santo. Mas essa ajuda ¿do alto¿ não elimina as idiossincrasias terrenas ¿ questões de geopolítica, diversidade de opiniões e até conflitos de personalidades. A seguir, alguns pontos que estarão em debate no conclave, e que podem fazer a balança pender para esse ou aquele candidato.

COMO FUNCIONA. O conclave transcorre na base de quatro votações diárias, duas de manhã e duas à tarde. Um candidato, para ser eleito, precisa de 2/3 dos votos (a menos que se ultrapasse os 30 escrutínios, quando então a eleição se decide por maioria simples).

As primeiras candidaturas que surgem podem ser apenas ¿balões de ensaio¿, uma forma de testar preferências. É o que parece estar acontecendo agora com o cardeal Joseph Ratzinger. Ele é certamente uma figura forte, teólogo respeitado. Mas por que a Igreja escolheria um cardeal de 78 anos, que tem problemas de saúde, e que seria a continuação do pontificado anterior sem o brilho de João Paulo II?

Não por acaso, já surgiu a ¿anticandidatura¿ do cardeal Martini ¿ figura respeitadíssima, que uns cinco anos atrás era o favorito dos vaticanistas, mas que agora tem a mesma idade de Ratzinger, e está doente (Parkinson). Reformista, Martini está sendo lançado como um ¿anti-Ratzinger¿; mas deve ser mais para ocupar espaço, enquanto não surge outra candidatura.

TENDÊNCIAS. Tem-se falado exaustivamente de perfis individuais. Mas o que aconteceu de mais importante, na semana que passou, foram as conversas destinadas a definir quais são as grandes prioridades da Igreja no momento. A partir dessas definições é que candidaturas tomam corpo.

Nesse caso, algumas antíteses se delineiam. Por exemplo: Papa europeu ou Papa do Terceiro Mundo? Cada uma dessas linhas tem a sua lógica própria. Dizem alguns: se é no Terceiro Mundo que o catolicismo, atualmente, se expande, já seria hora de uma ¿abertura¿ da Igreja nessa direção ¿ o que leva água para o moinho de candidaturas como a do brasileiro Cláudio Hummes.

O outro lado responde: mas se a Europa é, hoje, um território de crise para o catolicismo ¿ igrejas se esvaziando, freqüência aos sacramentos idem ¿, não seria esse o espaço a ser mais defendido agora, por tudo o que a Europa representa na história do cristianismo? Nesse caso, o pêndulo poderia inclinar-se na direção de um cardeal como o arcebispo de Milão, Dionigi Tettamanzi, favorito também por outros motivos (como a idade certa, em torno dos 70 anos).

Uma outra dicotomia é a que separa os defensores da ¿ordem na casa¿ e a ala dos ¿reformistas¿. Os primeiros dizem que, depois do pontificado estelar de João Paulo II, está na hora de ser mais modesto, de cuidar do dia-a-dia, que ficou meio esquecido enquanto o Papa Wojtyla viajava pelo mundo. De novo, esta é uma linha favorável à candidatura Tettamanzi, ou de uma figura como o cardeal Re, íntimo conhecedor do Vaticano.

Os ¿reformistas¿ dizem que é urgente mexer nas estruturas de poder do Vaticano, e atender aos reclamos da opinião pública em relação a uma série de temas polêmicos: ordenação de padres casados, bioética, moral sexual etc. Candidaturas ¿reformistas¿ seriam a do cardeal Daneels, a do alemão Karl Lehman e a do hondurenho Maradiaga.

COLEGIALIDADE. Esses dois partidos podem entender-se em torno de um tema importante do Concílio Vaticano II: o da colegialidade. Isto significa que o Papa é o primeiro entre os bispos, dada a primazia de Roma, mas não é um soberano absoluto: passaria a governar em comunhão mais estreita com os outros bispos, representados pelas conferências episcopais. Dentro do grande movimento de pêndulo que marca a história da Igreja, essa seria uma tendência perfeitamente natural depois do pontificado ¿monárquico¿ de João Paulo II. O que, de novo, aponta para uma figura mais ¿pé no chão¿, do gênero bonachão que se associa a João XXIII ¿ e ao cardeal Tettamanzi!

Por aí também passa a difícil questão da mídia. Será o novo Papa um ¿midiático¿ como João Paulo II? Não há sinal no horizonte de que essa figura exista agora. Mas também não se pode simplesmente voltar o relógio: João Paulo II soube usar a mídia de modo exponencial, e trouxe a mídia para o dia-a-dia dos assuntos religiosos (o que também explica a força de algumas cobranças a que a Igreja está sendo submetida).

O novo Papa deverá ter razoável desenvoltura nesse terreno (há vários cardeais que preenchem esse requisito). Mas não se fazem figuras como Wojtyla todos os dias; e nem a insistência nesse perfil faria bem à Igreja. Um Papa não deve nem precisa ser a continuação do seu antecessor.

O SAGRADO. O talento midiático de João Paulo II foi analisado sob todos os ângulos. Isso acabou deixando na sombra o que é talvez o aspecto mais forte da sua personalidade: a espiritualidade. O último Papa foi, antes de tudo, um homem de oração, para quem o exercício da sua missão pressupunha um contato permanente com as inspirações do Alto.

André Malraux, que era muito inteligente, sem ser católico, disse há muitos anos que ¿o catolicismo do século XXI será um catolicismo místico ou não será nada¿. Com isso, ele não se referia certamente a êxtases e experiências extraordinárias, mas ao que está no fundo da experiência religiosa: o contato com o Sagrado, com o Mistério último. Foi a partir dessa experiência que se formou o cristianismo ¿ e, em torno dele, toda uma civilização.

Depois, o mundo foi se transformando ¿ e, mais modernamente, entrou numa fase de drástica secularização (movimento iniciado sobretudo com a Filosofia das Luzes do século XVIII). A religião saiu do centro do cenário, enquanto o mundo moderno experimentava outras idéias-força. Foram os muitos ¿ismos¿ que marcaram a História do século XX ¿ sendo o último deles o marxismo, que tinha quase o caráter de uma religião laica (se é que isso existe).

Esses mitos modernos, um a um, perderam força; e o que hoje se chama de ¿crise do mundo moderno¿ é uma grande crise de sentido: para que é, afinal, que nos esforçamos, que tentamos avanços nessa ou naquela direção? O problema das drogas é apenas uma das conseqüências desse vazio de sentido ¿ poeticamente evocado num filme recente, ¿As invasões bárbaras¿.

A esse mundo ¿sem sentido¿ João Paulo II trouxe uma dose de convicção extraordinária. Sua vida, até o último instante, foi uma demonstração de que ele acreditava no que pregava ¿ até os extremos de um sacrifício final e total.

Muito mais que o talento midiático, não terá sido essa convicção profunda que arrastou multidões inumeráveis até a Praça de São Pedro, no que Roberto da Matta chamou de ¿tsunami religiosa¿? Não terá sido esse grau de autenticidade que atraiu para ele os jovens, em todas as fases do seu pontificado ¿ mesmo se, aparentemente, ele só tinha palavras duras para dizer a respeito de certos comportamentos modernos?

O mistério da Igreja, no fundo (como o de outras religiões) é o mistério do Sagrado, do encontro com alguma coisa que vai além da nossa experiência prosaica. Essa foi a grande marca do pontificado de João Paulo II; e é pouco provável que os cardeais que agora se reúnem na Capela Sistina não tenham se dado conta disso.

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