Título: A outra nódoa
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 19/04/2005, Panorama Político, p. 2

Tendo pedido perdão ao povo africano pela diáspora e pela escravidão, o presidente Lula recebe hoje 30 caciques indígenas e assina ato de demarcação de outras sete áreas, depois de ter homologado a da reserva Raposa Serra do Sol. Se a hora é de expiação histórica, caberia outro pedido de perdão pelo genocídio iniciado pelos portugueses e continuado pelos brasileiros.

Tanto quanto para os africanos, a palavra que cabe é mesmo genocídio. Visitando o que foi um campo de concentração nazista, em 2000, falando dos cerca de seis milhões de judeus assassinados, o cacique Nilton Pataxó afirmou que eles, índios, também tiveram quase o mesmo número de perdas, mas num processo lento, silencioso e contínuo, que perdura até hoje. Houve quem achasse demagógico o gesto de Lula no Senegal. Lembrar os crimes da humanidade pode não resolver nada, mas é isso que faz da História ¿um profeta com olhos voltados para o passado¿ (Eduardo Galeano).

Hoje se avalia que quando Cabral aportou na Bahia aqui viviam, incluindo a região do Prata, cerca de cinco milhões de índios. Em um século caíram à metade, vítimas das doenças e das carabinas dos brancos, da captura para a escravidão e da guerra de extermínio das Bandeiras no desbravamento do interior. A Igreja condenaria a escravidão de indígenas, mas ao catequizá-los também fortalecia o eurocentrismo, crença de que os outros povos, pretos ou vermelhos, eram seres inferiores.

Os índios brasileiros hoje não passam de 350 mil. Já foram menos, andaram se multiplicando mas estão sendo novamente mortos, não apenas por garimpeiros e grileiros. As doenças e até a subnutrição atacam as aldeias. Das mais de mil tribos, sobraram 215. Segundo a Funai, 190 mil índios vivem fora de reservas. Em Manaus, são mais de dez mil. Em Brasília, a dez quilômetros do Palácio do Planalto, oito famílias vivem numa área invadida e agora devem ser desalojadas. Uma das reivindicações que farão hoje a Lula é a de que a Funai volte a gerir a política de saúde das aldeias. A partir de 1998 a tarefa foi transferida à Funasa, que por sua vez terceirizou parte do serviço a ONGs. Passaram a faltar vacinas e remédios. É uma vergonha para o Brasil que o Peru, país muito mais pobre, tenha preservado muito mais de sua população indígena, de suas terras, cultura e produção.

A chaga da escravidão negra hoje é um espinho no coração mais esclarecido da Europa, que financia muitos estudos e ações voltados para a diáspora africana. Já os índios brasileiros, apesar de tantas ONGs, vêm perdendo as vozes que no século passado fizeram com que entrassem na agenda do Estado. O marechal Rondon criou a Funai e Darcy Ribeiro nos mostrou a nós mesmos como etnocidas. Os indigenistas românticos, como os irmãos Villas Bôas, também entraram em extinção.

Lula e Celso Amorim recebem hoje os chanceleres do continente para acertarem a cúpula de agosto. Mais um passo para a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações.

Vai dar guerra

O senador Tião Viana (PT-AC) está apresentando uma emenda constitucional que pode ser o remédio mais eficaz contra o nepotismo e o filhotismo político no serviço público. O projeto em tramitação na Câmara, todos sabem, é um avanço mas não corta o mal pela raiz. A emenda de Tião é radical. Determina que os cargos de confiança só possam ser ocupados por funcionários de carreira concursados. Para que os partidos, todos dependentes de nomeações, não sofram uma grave síndrome de abstinência, a emenda prevê que a cada ano 20% destes cargos sejam preenchidos com pessoal de carreira. Em cinco anos, teríamos o fim das nomeações de pessoas que não integram o serviço público. Esta é a regra, diz o senador, no Reino Unido e na França. Nós continuamos reproduzindo a tradição patrimonialista ibérica, da livre escolha dos nomeados por laços que podem ser de sangue ou de conveniência política. Vai ser um sururu mas esta emenda pelo menos vai exigir que todo mundo tire a máscara no debate.

Recontando os planos

O presidente do PMDB, Michel Temer, esclarece, a propósito da coluna de domingo. Primeiro: não está interessado em ser líder do partido, com ou sem o apoio do Planalto. Admitiu apenas ocupar o cargo transitoriamente até que a bancada ¿ que vive nesta gangorra entre José Borba e Saraiva Felipe ¿ faça uma eleição incontestável. Se virasse líder, no dia seguinte alguém (da ala governista, certamente) pediria sua substituição na presidência do partido.

Segundo: em sua conversa com Dirceu, não se avançou sobre a hipótese de ele vir a ser vice do candidato petista a governador de São Paulo.

¿ Nós vamos ter candidato a governador. Se não for eu, será o Quércia ¿ diz Temer.

Mas ele admite que é grande o assédio do PT para garantir uma aliança integral com o PMDB para a reeleição de Lula. Estão conversando sobre o que, então? Por ora, diz Temer, apenas sobre a sustentação parlamentar. O próximo a ir ao Planalto será Garotinho, para uma conversa que ele, Michel, agendará.

SARNEY, o das letras, estava prosa ontem. Recebeu da editora La Table Ronde, braço da Gallimard, a notícia de que acaba de sair em Paris a segunda edição de ¿Norte das Águas¿, seu livro de contos lá publicado em 1987. Acaba de receber também cópia do filme ¿Saraminda¿, baseado em seu romance, dirigido por Odorico Mendes, um dos co-diretores de ¿Tomates verdes fritos¿.