Título: Quando você sabe que está velho? (o dia-a-dia)
Autor: ROBERTO DaMATTA
Fonte: O Globo, 20/04/2005, Opinião, p. 7

Na outra semana falei da velhice na política. Quero, hoje, abordar coisas mais corriqueiras, mas não menos importantes, como o conjunto de sintomas sem vinculação ideológica e que se manifestam no corpo e na alma. Por exemplo: você acaba de pentear a vasta cabeleira perdendo, frente ao espelho mágico, aquele tempo justo no ajeitar do velho e querido topete que ao longo de sua vida fez tanto sucesso. Findo o ritual da toalete, já na sala e sentado com a família em volta da novela do momento, seu netinho pergunta, à queima-roupa: ¿Vovô, como é que você faz para pentear essa careca?¿ O pente não dói?

Essa súbita transformação da cabeleira branca numa careca lhe dá uma prova concreta das chamadas dissonâncias perceptivas típicas da chamada terceira (e derradeira) idade. Você sabe que a velhice chegou, porque teima em ver cabelo onde os outros enxergam um belo e vasto campo de avião de mosquito. O mesmo ocorre com relação à dentadura que você julga perfeita, mas que enche a sua boca de um terrível mau hálito que alguma criatura cruel lhe informa em algum momento inesperado.

Eu não vou prosseguir me referindo à barriga que você tenta ignorar, mas que todas as vitrines do shopping cruelmente denunciam, nem quero elaborar muito sobre as unhas do pé, esse cavalo de batalha para os homens, naquela eterna briga com suas esposas para que sejam ao menos cortadas já que você, velho e sábio, sabe que não se deve perder tempo com apêndices inúteis e mais ou menos mortos e que, ainda por cima, não aparecem.

No Brasil, uma certeza plena de velhice é ser chamado de ¿você¿ por uma mulher bonita que, em seguida, apresenta-lhe ao filhinho de seis anos arrematando: ¿Julinho, tome a bênção do vovô!¿ Quando moço, todas as mulheres atraentes lhe tratavam com certa distância, chamando-o cautelosamente de senhor. Naturalmente com medo de serem cantadas ou, quem sabe, comidas. O senhorio incômodo e que coloca distância e respeito era devidamente tirado naquele momento crítico da cantada, quando se dizia com enganador e malandro respeito: ¿Faça-me o favor, dona Maria, não me ofenda mais com esse abominável senhor?¿

Uma outra certeza de antigüidade é quando o garotão sarado de academia lhe oferece, solícito, o seu lugar naquela enorme e mortal fila do banco e você imediatamente toma consciência de que não é mais um competidor ou sequer um subcidadão normal. Pois quando as pessoas têm pena de quem está na fila neste grande país de todas as filas é sinal de que você efetivamente se transformou num marginal.

Um amigo conquistador, também avoengo, contou-me o que considera sua pior experiência de envelhecimento. Ele descia uma escada do consultório do dentista e a moça lindíssima, com quem pensava estar flertando na sala de espera, ofereceu-lhe a mão firme, porque ¿assim você não corre o risco de cair¿. ¿ Eu me via andando como um soldado em marcha forçada ¿ contou-me, desiludido ¿ mas vejo que sou apenas mais um ancião de andar claudicante.

Na farmácia, surge lá de dentro do seu corpo o ancião quando o sujeito lhe entrega cordialmente o Viagra sem que você abra a boca. É que o seu olhar inquisitivo e a sua demora em ler o nome de sua loção de barba favorita lhe transforma de imediato num velhinho inseguro, discreto e, naturalmente, impotente.

Você sabe que está velho quando verifica quem são os seus companheiros de fisioterapia e quando Michelle, sua fisioterapeuta, tenta todos os truques para dobrar sua perna ¿ aquela que tem um ¿bloqueio monstro por causa da cirurgia¿ ¿ sob os olhares zombeteiros de Luiz, colega que observa a cena como que dizendo para si mesmo: esse cara está mesmo mal das pernas?

Você sabe que está ficando velho quando acha natural e comovente que seus netos lhe perguntem carinhosamente: ¿Vovô, quando você morrer essa casa vai ficar para quem? Aliás, desculpe o mau jeito, mas você me dá seu carro e a sua aliança?¿

Pior que isso é encontrar a melhor amiga de sua ex-namorada e depois passar a evitar o ¿grande amor de sua vida¿ com medo da projeção física comparativa.

Você sabe que está ficando velho quando seus livros viram ¿clássicos¿ e ¿obras originais¿, e essas palavras chegam trinta anos depois, vindas da boca de seu colega mais competitivo. Ou quando você vai a um restaurante e não bebe o terceiro uísque com medo de contar a mesma piada pela quarta vez. Ou quando, em casa, diante do seu prato favorito, você sabiamente deixa de comer muito para não passar mal. Quando o olho fica menor que a barriga, você está velho?

A velhice está com você quando todos os médicos se tornam seus amigos íntimos na primeira consulta porque tocam, sem-cerimônia, nas partes mais recônditas do seu corpo. E você acha tudo natural e não se sente violentado como o jovem deputado nordestino.

A piada de mau gosto ou o fuxico destrutivo que você decide guardar por caridade ou respeito indicam a sua entrada no terreno sábio e cauteloso da velhice em que, é fato, as pessoas andam devagar porque sabem que a pressa apenas leva ao nada mais rapidamente.

A velhice, enfim, chega quando você não diferencia mais sexo e amor, desconfia que é feio e sabe que vai ser esquecido. ROBERTO DaMATTA é antropólogo.