Título: Fumaça de vulcão
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 21/04/2005, O Globo, p. 2
A deposição do presidente do Equador, Lucio Gutiérrez, aprovada pelo Congresso e apoiada pelas Forças Armadas, é o sinal agudo de que a instabilidade política está de novo visitando a América do Sul. Estes sinais vêm se agravando e tomando formas diferentes, de país para país. São conseqüências de problemas diversos, mas podem refletir também a decepção com os resultados econômicos e sociais dos governos democráticos, como apontou aquela recente pesquisa do Latinobarômetro.
As crises vêm afligindo mais a região andina do continente, mas isso não garante que os demais países estejam imunizados contra a instabilidade.
Lucio Gutiérrez foi eleito com o apoio importante das comunidades indígenas, aliou-se depois a forças conservadoras, passou a enfrentar contestações crescentes, alterou a composição da Suprema Corte e acabou recorrendo ao estado de sítio. Ontem foi deposto e substituído pelo vice, Alfredo Palacio. Persiste, porém, a incerteza sobre o que acontecerá no Equador.
A Bolívia segue, aos trancos e barrancos, sustentando o governo de Carlos Mesa, enfrentando os cocaleiros e a força crescente das comunidades indígenas, liderados por Evo Morales. Desnecessário recordar a antiga situação da Colômbia, conflagrada pela guerrilha das Farc, que acabaram se transmutando em braço armado do narcotráfico. A Venezuela continua dividida entre os seguidores apaixonados de Hugo Chávez e seu bolivarismo, e seus não menos exaltados adversários.
Na Argentina o presidente Néstor Kirchner tem estimulado os ¿piqueteros¿ e pregado o boicote a empresas, sobretudo multinacionais de combustíveis, cujos preços poderiam realimentar a escalada inflacionária. Este é o grande risco que corre Kirchner, depois de ter sido vitorioso na renegociação da dívida argentina.
O Paraguai, apesar de sua longa história de golpes, anda calmo, e o Uruguai vive ainda sua lua-de-mel com o recém empossado presidente Tabaré Vásquez, um político de esquerda que, como Lula, despertou imensas esperanças com sua eleição. O Chile vive sua nova democracia, em que perderam o viço os movimentos sociais e as entidades da sociedade civil.
E cá estamos, no Brasil, com o governo Lula atravessando dificuldades políticas, apesar do bom andamento da economia, da boa aprovação do governo e das perspectivas de reeleição do presidente Lula. E, sobretudo, da saúde das instituições. A homenagem de hoje em São João Del Rey a Tancredo Neves, pelos 20 anos de sua morte, será também uma celebração destes 20 anos de contínua experiência democrática.
O que houve de comum entre todos os países sul-americanos nos tempos recentes, com diferenças no grau de profundidade, foram as experiências com o modelo neo-liberal e as receitas do FMI. Os custos estão aparecendo agora e afetando, infelizmente, as jovens democracias.
Por estes dias, o ex-presidente Fernando Henrique apontou o risco de um convulsão social no continente a partir dos movimentos indígenas. E de fato, nos países andinos eles têm sido um fator importante da nova instabilidade. Tornaram-se agentes de peso no processo político e, em alguns casos, estão muito próximos da produção de coca ou do narcotráfico.
Estas são perspectivas ruins para a reunião de presidentes do continente, em agosto no Brasil, para discutir a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, hoje o projeto da política externa mais caro ao presidente Lula, como ele mesmo deixou claro ontem num discurso, antes ainda da queda do presidente do Equador. Mas o golpe no Equador é sobretudo uma notícia triste para os povos da América do Sul.