Título: Vinte anos
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 22/04/2005, O Globo, p. 2

¿Minas, teu segundo nome é liberdade¿, gostam os mineiros de ouvir e de dizer. Foram cultos à liberdade as duas festas cívicas de ontem em Minas. A de Ouro Preto, evocando mais uma vez a Inconfidência e a execução de Tiradentes. A de São João del Rei, lembrando os 20 anos da morte de Tancredo Neves, que se confunde com o fim da ditadura e a restauração democrática.

¿A Presidência é destino¿, dizia Tancredo, recorda seu herdeiro político e anfitrião de ontem, o governador Aécio Neves. Quis o destino que depois de derrotar a ditadura em seu próprio campo, o Colégio Eleitoral, buscando a legitimidade na chama das ruas que a campanha das Diretas acendera e empregando toda sua habilidade para neutralizar os riscos de golpe ainda existentes, viesse ele a morrer no mesmo dia em que Tiradentes foi executado. Esta coincidência, pelo menos em Minas, associará para sempre o herói maior da Inconfidência ao fiador da transição pacífica para a moderna democracia brasileira.

Em Ouro Preto, o culto ao passado deu também lugar às questões do presente, também relacionadas com a democracia. Lembrando em seu discurso que os inconfidentes pensaram o Brasil livre como uma federação, assentada na harmonia entre a União e os estados, Aécio acusou ¿a crescente erosão do pacto federativo¿ e a concentração de impostos nas mãos da União. A seu lado, entre as muitas autoridades que acabava de condecorar com a Medalha da Inconfidência, os ministros Palocci e Dulci, este representando o presidente Lula. Outros quatro governadores ¿ Geraldo Alckmin, Germano Rigotto, Simão Jatene e Marcelo Miranda ¿ mais o presidente do Senado, Renan Calheiros, aplaudiram exultantes. Um constrangido Palocci diria depois concordar com a reflexão do governador, ressalvando que a concentração vem do passado recente, mas não tem aumentando no atual governo. Que, ao contrário, tem se esforçado para negociar a reforma tributária. Ela entra em pauta na semana que vem, ou pelo menos o primeiro passo, a reforma do ICMS e as compensações aos estados pelo fim da guerra fiscal e da desoneração das exportacões. Relator da reforma, o deputado Virgílio Guimarães acenava com uma proposta que permita o compartilhamento inicial de algumas contribuições, exclusivas da União. Se o espírito de Tancredo ajudar, pode-se chegar a um acordo, mas não é fácil.

De forte simbolismo o convite a Mário Soares, o proeminente político português, para discursar numa solenidade que lembra as atrocidades cometidas por seu país ao sufocar o movimento libertador mineiro. Já nos esquecemos que Tiradentes foi enforcado e esquartejado, e as partes de seu corpo expostas como exemplo em Vila Rica e nas estradas. Passou sobre a ferida com grande elegância, pregando a fraternidade Brasil-Portugal mas cobrando mais ênfase nesta relação. De fato, a política externa brasileira tem se ocupado muito mais da relação com a Espanha do que com Portugal. Louvou particularmente Tancredo e os construtores da transição, destacando Ulysses, Sarney e seu dileto amigo José Aparecido Oliveira.

É natural que Tancredo, por seu martírio, por ter feito a travessia sem chegar vivo à praia democrática, seja o protagonista principal destas evocações, o que andou desgostando alguns ulyssistas. Mas ele mesmo, em sua sabedoria política, como recorda seu ex-ministro Ronaldo Costa Couto, sabia que não se chega à vitória política sozinho, sem agregar forças, pessoas e idéias. Sua memória continua agregando, como se viu pela romaria de autoridades que foram ontem a São João del Rei, mesmo não tendo podido ir a Ouro Preto, caso de Sarney e do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti.

Outro de seus ensinamentos, a modéstia, que anda tão em falta na política. ¿Se você não tem humildade, dissimule pelo menos¿, ele brincava. Bom discípulo, Aécio fez incluir na programação de São João também uma homenagem a Ulysses, que o destino privou de um túmulo, deixando seu corpo no mar. Mas chegou a Ítaca, ele que se comparava ao Ulysses da Odisséia nos duros tempos da travessia da ditadura. Ulysses tinha a espada. Tancredo, o arado que roçava cuidadosamente a terra da política. Como em 1961, ao viabilizar a posse de João Goulart com a fórmula parlamentarista. Não lhe faltava, porém, coragem para o confronto quando preciso. Ministro da Justiça, ofereceu-se a Getúlio para prender o ministro da Guerra que preparava o golpe em 1954. Getúlio deu-lhe uma caneta e uma boa noite. Matou-se a seguir, evitando o golpe. Em 1964, Tancredo foi dos poucos a votar contra a investidura do general Castello Branco na Presidência de que Jango fora apeado.

Além da visita a seu túmulo, ontem, em São João del Rei foi lançado o livro ¿Tancredo Neves ¿ Um homem para o Brasil¿, belíssima obra documental, e projetado o vídeo ¿Tancredo, o homem e sua travessia¿.

Sarney, que cumpriu seu mandato e levou a bom termo a transição iniciada, dizia discordar dos que chamam de anos perdidos a década de 80. Coisa dos que pensam o país apenas pela ótica da economia, diz ele. Porque o legado dos 80 é o da liberdade e da democracia, e sem elas não estaríamos avançando em todos os campos, ainda que devagar, mas sempre.