Título: A OUTRA FACE DO POLÍTICO, O HISTORIADOR TANCREDO
Autor: Jorge Bastos Moreno
Fonte: O Globo, 24/04/2005, O País, p. 12

Trechos de entrevistas do político morto há 20 anos têm relatos sobre a morte de Getúlio, a deposição de Jango e a cassação de JK

Tancredo Neves foi a própria História do Brasil. Participou ativamente dos maiores momentos da vida nacional, como no período mais dramático do fim do governo do presidente Getúlio Vargas, com seu suicídio, em 1954. Nestes fragmentos de uma série de depoimentos dados ao longo de quase dez anos de convivência, Tancredo, numa narrativa quase frenética, conta como ocorreram o suicídio de Getúlio, a deposição do presidente João Goulart e a cassação do ex-presidente Juscelino Kubitschek, em 1964.

Nenhum outro político de sua geração participou de momentos tão importantes da vida nacional. Qual foi o momento mais significativo de toda a sua vida pública?

TANCREDO NEVES: O momento mais marcante de toda a minha vida pública foi a morte de Getúlio Vargas. Como era seu ministro da Justiça, vivi o dia-a-dia da tragédia que o levou ao gesto heróico da morte, em defesa de sua honra. Getúlio morreu em meus braços e de sua filha Alzira. Quando entramos em seu quarto, cenário da traumatizante tragédia, ainda o encontramos com vida, com o corpo pendendo em parte para fora do leito. Ele estava agonizando. Do coração jorrava um intenso jato de sangue. Acomodamo-lo na cama, quando ele lançou um olhar circunvagante à procura de alguém. Por fim, fixou em Alzira e expirou. Até hoje não consigo me libertar da profunda emoção e do terrível impacto desta inesquecível ocorrência. O segundo fato que registro, pelas conseqüências que dele adviriam, foi a cassação e a suspensão dos direitos político do presidente Juscelino Kubitschek. O saudoso presidente, que sempre me honrou com sua amizade, logo em seguida à eclosão do movimento revolucionário de 1964, mostrava-se muito intranqüilo quanto à minha permanência na vida pública. Ele tinha como certa a cassação de meu mandato, em virtude de informações fidedignas que lhe chegavam, ao mesmo tempo que se considerava seguro, em face das ameaças revolucionárias. Ele dera seu voto à eleição do presidente Castello Branco, o que eu não fizera, a despeito da estima e da admiração que sempre tive por aquele marechal.

Por que o senhor não votou em Castello?

TANCREDO: É que eu vinha de ser o líder na Câmara do governo João Goulart, que a revolução depusera. Não tinha, pois, condições morais de votar no chefe dessa revolução. Sentamos no plenário, lado a lado, Juscelino e eu. Iniciada a votação, disse para ele: ¿Veja como é a política. Tenho tudo para votar no marechal Castello Branco e não vou fazê-lo¿. Ele me retrucou: ¿O marechal é um homem de honra e me deu sua palavra, na casa de Joaquim Ramos, que não alteraria o processo sucessório¿. Juscelino já era candidato do PSD à Presidência. Os fatos posteriores vieram a demonstrar o quanto ele estava enganado. Quando recrudesceram os boatos da cassação de Juscelino e as informações que eu recebia, provindas da Vila Militar, no Rio de Janeiro, eram das mais idôneas, fui procurá-lo para adverti-lo e tomar as providências que pudessem impedir a consumação da medida extrema. Disse-lhe, então: ¿A minha cassação não tem a mínima importância. Serei apenas mais um. Mas a sua, com seu passado de ex-governador e ex-presidente da República e de líder máximo da comunidade mineira, com sua imensa projeção internacional, será um profundo abalo para o Brasil, uma arrasadora humilhação para Minas Gerais, cujas conseqüências eu considero em médio e longo prazos imprevisíveis. Tudo devemos fazer para impedí-la¿. Quando conversávamos, chegava à casa de Juscelino o poeta Augusto Frederico Schmidt, homem da sua intimidade e confiança. Posto a par do assunto de nossa conversa, Schmidt explodiu numa de suas objugatórias: ¿Este assunto, a partir de agora, fica proibido nesta casa. Estive ontem demoradamente com Castello Branco. Ele me garantiu, com os dentes cerrados, que sua mão se secaria, mas que ele não assinaria a cassação do presidente Juscelino Kubitschek¿. Recebemos a informação com natural e compreensível euforia. E fomos almoçar possuídos da maior felicidade. No dia seguinte, a ¿Hora do Brasil¿ surpreendia e chocava a nação, com a sua proscrição. Fomos imediatamente a sua residência, que imediatamente também se lotou de amigos. Daí porque sempre achei que a participação do presidente Castello Branco na suspensão dos direitos políticos do presidente Juscelino Kubitschek não foi uma decisão de sua vontade, mas um ato que lhe foi imposto por injunções inevitáveis da revolução. E essa convicção me aprofunda no espírito quando o marechal, justificando o ato, assumiu textualmente a responsabilidade histórica de havê--lo tomado. Deixou claro que sua responsabilidade pelo ato era não a de um participante, mas a de um chefe compelido a conjurar em uma grave situação.

O senhor viveu de perto a deposição de João Goulart...

TANCREDO: A deposição de João Goulart foi outro acontecimento que me trouxe marcas profundas. Seu governo vinha cedendo às pressões populistas e seu programa de reformas era aproveitado para agitações de todos os tipos. Nos campos e nas cidades, as exacerbações dos espíritos na luta ideológica criavam os mais graves problemas ao presidente e a seus ministros, no tocante à manutenção da ordem. A rebelião dos marinheiros marcou o ápice dessa crise. Procuramos então o presidente e juntos analisamos a delicada conjuntura. Ele me pediu sugestões e eu dei: a expulsão dos marinheiros rebelados dos quadros da Marinha e a conseqüente abertura de inquérito para apurar e definir responsabilidades; a extinção do Pacto de União Sindical (PUA) e do grupo dos 11 de Brizola; e o provimento efetivo do Ministério da Guerra por um general de prestígio e que inspirasse confiança às Forças Armadas (o ministro Jair Dantas estava hospitalizado e o expediente do Ministério da Guerra fora entregue ao chefe de seu gabinete, um distinto general-de-brigada). O presidente recusou as minhas sugestões, achando que, se as aceitasse, estaria se despojando de parcelas consideráveis de sua autoridade. Discutimos e não chegamos a nenhum acordo. Nesse dia fiquei sabendo que o presidente João Goulart iria receber uma homenagem dos sargentos. Considerei o fato da maior gravidade e fiz tudo para frustrar essa solenidade, sem nada ter conseguido. O Abelardo Jurema, que era ministro da Justiça de João Goulart, em seu livro ¿Sexta-feira 13¿, dá um depoimento vibrante, sincero e fidedigno do que então se passou. Derrotado nos meus alvitres, deixei o Rio em demanda a Brasília para aguardar os acontecimentos, que já me pareciam incontroláveis. Ao chegar a Brasília, tive notícia da insurreição dos generais Moraes e Guedes, em Minas Gerais, e da posição assumida pelo general Kruel, em São Paulo. Pelo telefone convoquei o presidente João Goulart para vir a Brasília, sede do governo, onde qualquer providência teria o cenário natural ao seu desdobramento. O presidente aceitou meu apelo. Fui recebê-lo no aeroporto e ele foi logo me dizendo: ¿Suas previsões se confirmaram. No dia de hoje só tenho um ponto para comandar uma resistência em defesa do meu mandato e do povo, que é o Rio Grande do Sul¿ . Fomos para o Torto, onde encontramos já alguns amigos que também o aguardavam. Ficou decidido que o presidente e sua família deveriam seguir com urgência para o Rio Grande do Sul, enquanto Almino Afonso e eu redigiríamos uma proclamação do presidente à Nação. Fomos levá-lo ao aeroporto, onde o avião presidencial o aguardava para transportá-lo a Porto Alegre. Uma decepcionante surpresa nos aguardava: o avião presidencial havia sido sabotado e não conseguia pôr seus motores em funcionamento. Não foi encontrado um único mecânico que se dispusesse a reparar o defeito. Depois de uma longa espera, foi tomada uma iniciativa: havia no aeroporto o outro avião, antigo e precário, mas que oferecia autonomia de vôo até Porto Alegre, mesmo gastando mais tempo. Alguns amigos do presidente entraram nesse avião. Lembro-me bem de seu ex-ministro da Agricultura, o pernambucano Osvaldo Lima Filho, que foi na emergência, de extrema bravura e lealdade para com seu amigo já praticamente deposto. Já anoitecia quando deixamos o aeroporto em direção ao Congresso, onde prevíamos uma sessão tumultuada. Pelo caminho encontramos a tropa mineira, que vinha ocupar Brasília. Por questão de minutos não surpreenderam o presidente João Goulart e seus amigos no aeroporto. Quando chegamos no Congresso, o ambiente era tenso. O presidente do Senado, Auro Moura Andrade, havia reunido os principais líderes, reunião da qual eu não participei; mas fui informado que nela ficara deliberada a declaração do impedimento do presidente João Goulart, sob o pretexto de que havia abandonado o governo e o território nacional. O assunto não seria objeto de deliberação do plenário, como acontecera nos impedimentos dos presidentes Café Filho e Carlos Luz. O impedimento se declarara por meio de simples comunicação do presidente Moura Andrade, como de fato aconteceu. Num esforço supremo de impedir esse golpe do Congresso, obtive de Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil , um ofício ao presidente Auro Moura Andrade, comunicando que o presidente João Goulart achava-se em território nacional, no Rio Grande do Sul, para onde transferira a sede do governo. A sessão já havia sido iniciada e o presidente do Congresso já se preparava para a comunicação do impedimento, quando lhe entreguei o ofício. Moura Andrade leu o documento: ficou perplexo e suspendeu a sessão por dez minutos. Não esperou que esse tempo se expirasse e já havia rearticulado os líderes, e todos foram unânimes em que não devesse se dar consideração maior ao documento, prosseguindo-se no plano de que se consumasse o impedimento. Ao declarar impedido, o presidente Moura Andrade, em nome do Congresso, sem que sua decisão pudesse sequer ter sido discutida, o tumulto se apossou da Casa: palavrões, insultos, vias de fato e a tentativa de agressão ao presidente Auro Moura Andrade. Tudo se processou em uma imensa e ampla confusão e os ânimos, exacerbados, dificilmente se continham. Ao mesmo tempo o presidente da Câmara, Ranieri Mazzili, as Mesas da Câmara e do Senado e numerosos parlamentares se dirigiam ao Palácio do Planalto, onde Mazzili se empossou na Presidência.

O que o senhor acha desse líder metalúrgico que está surgindo aí, liderando as greves no ABC?

TANCREDO: Lula é um líder autêntico, respeitável. Tem demonstrado ser um homem ilustre e capaz. Um líder que há muito tempo, no Brasil, eu não via igual.

Se o senhor não fosse Tancredo Neves, quem o senhor gostaria de ter sido?

TANCREDO: Fisicamente falando, eu gostaria de ter o físico do Orestes Quércia e a cabeça do San Thiago Dantas ou, nos tempos de hoje, de Fernando Henrique Cardoso.

Doutor Tancredo, o Lula anda dizendo que o senhor, como candidato à Presidência, acende um vela para Deus e outra para o diabo.

TANCREDO: E ele, que só acende para o diabo?