Título: FERROVIAS: TUDO NOS TRILHOS, EXCETO OS TRENS
Autor: Alba Valéria Mendonça
Fonte: O Globo, 24/04/2005, Rio, p. 20

De quase três mil quilômetros de estradas de ferro que cortavam o Estado do Rio, restam hoje menos de 50%

das Pedras, a antiga estação ferroviária foi desativada e virou moradia para famílias sem teto

Tem boi na linha. Também tem cavalo, mato, casebre, praça e até um circo. Curiosamente, a única coisa que não se vê mais nas linhas férreas que cortam o estado é o trem. Deixadas para trás a partir da década de 50 ¿ quando o governo deu ênfase ao sistema rodoviário de transporte de cargas e de passageiros ¿ as ferrovias chegaram a tal estado de abandono que hoje não é mais possível recuperá-las. Das 17 estradas de ferro e linhas que cruzavam bairros e cidades e chegavam a Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo, restam apenas nove em atividade ¿ sendo que das que transportam passageiros, só a Estrada de Ferro do Corcovado (Cosme Velho ¿ Paineiras) mantém o trajeto original completo.

Aliás, a luz no fim do túnel se faz presente justamente neste sentido: o turístico. Segundo historiadores, engenheiros ferroviários e preservacionistas, a saída é a recuperação de estações históricas e do que restou das linhas em atração turística. A Supervia, concessionária que administra as cinco linhas que partem da Central do Brasil, aposta no metrô de superfície.

¿ No projeto, todos os trens terão ar-condicionado e serão operados por intervalos regulares, como no metrô. Com isso, vamos ampliar o número de passageiros de 540 mil para 800 mil por dia ¿ prevê a diretora de desenvolvimento Regina Oliveira, acrescentando que não há planos para extensão de linhas, que demandam investimentos muito elevados e têm retorno lento demais. ¿ Projetos assim, só a longo prazo.

Terreno da primeira linha férrea foi invadido

O engenheiro ferroviário Helio Suêvo ¿ que lançou um livro sobre a história das ferrovias do Rio, em 2004 ¿ diz que, dos quase três mil quilômetros de linha, hoje restam menos de 50% no estado. Ou até menos, já que os furtos de trilhos e dormentes prosseguem em alta velocidade. Trens apodrecem em gares, linhas inteiras foram aterradas ou asfaltadas e o que restou de trilhos e dormentes virou cercas. Ele lamenta o descaso com a primeira estação do Brasil, de 1854, a Guia de Pacobaíba, em Praia de Mauá, em Magé.

¿ O Brasil seguiu na contramão ao abandonar a ferrovia. Há um ano, a estação e 300 metros de linha foram recuperados, junto com a prefeitura. Mas a área em frente foi invadida. Não há mais como reativar os sete quilômetros até Bongaba ¿ lamenta Suêvo.

Abandono e descaso viajam por todas as linhas do estado. Em Porto das Caixas, o primeiro túnel ferroviário do país foi soterrado pelo lixo. Em Visconde de Itaboraí, a estação está sem atividade desde novembro ¿ quando roubaram os trilhos da linha de Niterói ¿ e virou pasto e depósito de vagões destruídos. Pontes como a Engenheiro Paulo de Frontin, construída em 1897 ¿ única em ferro e em curva no mundo, com 82 metros de comprimento ¿ só servem para a prática de rappel.

Já a Ponte Santa Branca, na estrada Japeri-Miguel Pereira, em estilo inglês, teve os trilhos substituídos por tábuas para dar passagem a carros e cavalos. Em Governador Portela, os trilhos terminam num circo ao lado da estação. Em Japeri, casas foram construídas sobre a via férrea.

A desativação da ferrovia Japeri-Miguel Pereira, que chegava a Minas, deixou a cidade de Governador Portela órfã. O povoado, que cresceu em torno da via férrea, viu a economia minguar e o futuro seguir por outro caminho. Neta de maquinista, Marcela Ferreira, dona do bar na antiga estação, diz que o fim da ferrovia mudou sua vida.

¿ Toda a minha família trabalhou na ferrovia. Aqui, a gente tinha duas opções: estudar no Senai, que formava mão-de-obra para a rede, ou entrar para banda de música e ingressar nas Forças Armadas. Estudar no Senai era um sonho, difícil como vestibular. Passei, mas o curso acabou. Sem opção, entrei para a música ¿ conta Marcela, que toca trompete na banda da cidade.

Estação foi transformada em casa e templo religioso

Quando o trem parou de circular em Venda das Pedras, na antiga ferrovia Norte Fluminense, em 1985, o agente José Rosa foi designado para tomar conta da estação e evitar o roubo de material. Mas o tempo foi passando, ele foi aposentado e a ferrovia, abandonada. Sem casa para morar, ele transformou a estação em sua casa, onde vive com a mulher, seis filhos e 14 netos. Na antiga área de embarque, fez uma sala para cultos religiosos.

¿ A última vez que visitei minha mãe, em Minas, foi numa viagem desse trem. Hoje a gente vive como Deus quer. Com a rede abandonada, roubaram trilho e dormente para fazer casas. Tem muitas casas, que se tivessem motor, entrariam no trilho ¿ diz o ferroviário aposentado.