Título: RUÍDO NO RÁDIO DA POLÍCIA
Autor: Cristiane de Cássia
Fonte: O Globo, 25/04/2005, Rio, p. 8

Ofensas, ameaças e menções a facções criminosas invadem faixa exclusiva da PM

Homens se dizendo bandidos, da favela de Vigário Geral ou de Parada de Lucas, invadiram, no início da tarde de anteontem, uma freqüência de radiocomunicação usada por três batalhões da Polícia Militar. Durante uma hora e meia, os supostos criminosos ocuparam a faixa do rádio, que deveria ser exclusiva para a troca de informações entre policiais, para ofender a instituição, fazer ameaças e exaltar atos criminosos. Eles chegaram a afirmar que teriam sido os executores de dois policiais no Túnel Rebouças, no mês passado.

¿ Nós matamos dois lá no Túnel Rebouças, não se lembra não? ¿ provocou um dos homens que participaram da conversa.

As faixas invadidas eram do 16º BPM (Olaria), 17º BPM (Ilha do Governador) e do 22º BPM (Maré). As conversas supostamente aconteciam entre bandidos, mas policiais também teriam participado. Ninguém ainda foi identificado. O relações-públicas da Polícia Militar, coronel Aristeu Leonardo, disse que só o Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel) poderia explicar tecnicamente o que permitiu a invasão da faixa de rádio da polícia.

O uso clandestino do rádio começou às 13h52m de sábado. Homens não identificados assumiram o controle do rádio, impedindo os policiais de usá-lo no patrulhamento da região, que é repleta de favelas e abriga uma das áreas mais violentas da cidade ¿ tornando-se, por isso, conhecida como a ¿Faixa de Gaza carioca¿. Entremeando as transmissões, eram cantados raps de apologia ao crime. Houve bate-boca, do qual teriam participado policiais militares, que só terminou quando uma pessoa, provavelmente policial, orientou as equipes dos batalhões a evitarem o rádio e a se comunicarem por telefone.

Comandante admite problema há 2 meses

O comandante do 16º BPM (Olaria), tenente-coronel Celso Nogueira, admitiu que há dois meses bandidos vêm interferindo na freqüência do rádio. Segundo ele, o Centro de Comunicação e Informática da Polícia Militar (CCI) ainda não enviou qualquer comunicado oficial sobre o problema e que, quando isso acontecer, será aberta uma investigação.

¿ Às vezes a gente precisa trocar de faixa para conseguir se comunicar pelo rádio. Essa interferência é péssima e toda a rede entra em pane ¿ disse Nogueira.

O comandante do batalhão da Ilha do Governador, tenente-coronel Odilon Machado, também procurado, não quis se pronunciar sobre o assunto. O comandante do batalhão da Maré, tenente-coronel Mário Sérgio Duarte, não foi encontrado.

O chefe do Centro de Comunicações e Operações da PM, major Ednaldo Pereira dos Santos, afirmou que o rádio dispõe de um identificador (que poderia rastrear a origem da transmissão), mas, segundo ele, o diálogo de anteontem não foi registrado. Em casos de interferências como esta, o major Santos esclarece que os policiais são orientados a não discutir com os bandidos.

Nas transmissões clandestinas de anteontem, os policiais militares foram provocados diversas vezes e até acusados de receber propina do tráfico.

¿ Ó, décimo sexto, teu patrão depois não vai mandar dinheiro, não... Depois, não vai dinheiro daqui pra vocês não, hein? ¿ afirmou um dos homens que usavam a faixa.

O comandante do 16º BPM rebateu as alusões a propinas:

¿ Em 31 anos de carreira já ouvi de tudo e não vou me deixar impressionar por isso. Vigário está ocupado por policiais de oito batalhões diferentes.

Nas transmissões, o poderio bélico dos traficantes foi exaltado:

¿ M-16 (fuzil), vários AR (fuzis AR-15), vários AK (fuzis AK-47), vários 62 (fuzis 7.62), tá ligado? Tem até G-3 2000 (outro tipo de fuzil).Várias granadas, MP-4, bota a cara! ¿ disse outro invasor da faixa de rádio da polícia.

Em alguns momentos, parecia que a freqüência era disputada por bandidos de facções criminosas rivais:

¿ E aí, de Vigário, deixa a freqüência tranqüila aí, bandido. Tá botando música até de área amiga que não tem nada a ver com o bagulho!

Num determinado momento, um policial teria se manifestado. Sem se identificar, ele reclamou das interferências, que estariam se repetindo em seus últimos plantões.

¿ O chato é que tem uma cambada de polícia bobão que todo serviço fica respondendo ¿ disse, acrescentando que, numa das vezes, um policial estava encurralado por bandidos e quase não conseguiu usar o rádio.

A Secretaria de Segurança Pública informou que está desenvolvendo um projeto de modernização do sistema de radiocomunicação, que será implantado no prédio da Central do Brasil. O principal objetivo é impedir justamente que as freqüências usadas pela polícia sofram interferências ou sejam monitoradas.

Pesquisador Uerj, o sociólogo Ignácio Cano disse que a situação é grave, principalmente devido às denúncias de pagamento de propina. Para ele, a suspeita de que policiais conversaram com bandidos levanta outra questão importante:

¿ O aspecto mais preocupante é o da corrupção. Nos diálogos, os dois lados falam sobre propina, mostrando que a corrupção é uma realidade e afeta boa parte da corporação. O segundo componente é o da promiscuidade entre bandidos e policiais. A troca de ofensas, que não é novidade, coloca os policiais no nível dos bandidos, o que não interessa à polícia.