Título: RELIGIÃO E ÉTICA NA ALERJ
Autor: MARIA DAS DORES CAMPOS MACHADO
Fonte: O Globo, 28/04/2005, Opinião, p. 7

Na reportagem ¿Uma pizza a 37 mãos¿ O GLOBO (15/4) apresentou aos leitores o resultado da votação na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro do Projeto de Resolução 968/2005, de autoria da Comissão de Constituição e Justiça, que decretava a perda do mandato do deputado Alessandro Calazans por quebra de decoro parlamentar. Acusado de usar a prerrogativa de presidir a Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava a corrupção na Loterj para negociar a retirada do nome de Carlinhos Cachoeira do relatório final, Alessandro Calazans, além das incansáveis incursões nos gabinetes dos colegas em busca de apoio para a manutenção do mandato, levou grupos de populares evangélicos para as galerias da Assembléia nos dias em que sua cassação seria votada.

No dia 12 de abril, a manifestação efusiva desses ¿irmãos de fé¿ do deputado, que é filiado à Igreja Internacional da Graça de Deus, acabou fazendo com que um parlamentar, ligado ao presidente da Casa, apresentasse uma emenda substituindo a cassação por uma suspensão de 180 dias. Tratava-se de uma manobra para impedir que a votação favorável a Calazans naquele contexto recaísse de forma negativa sobre a casa já tão desmoralizada.

Levada para o exame na Comissão de Constituição e Justiça no dia seguinte, a proposta do deputado Sivuca (PSC) seria rejeitada por 4 a 3 numa reunião tumultuada pelo esforço dos deputados evangélicos Aurélio Marques, Domingos Brazão e Samuel Malafaia, em atenuar a punição ao deputado Calazans. Conforme O GLOBO, o deputado Domingos Brazão, no afã de defender a redução da suspensão de Calazans de 180 para 30 dias, teria quebrado o vidro da mesa com um soco. Certamente, esse parlamentar agiu movido não só pela identidade religiosa, mas também pelo temor de que fosse o próximo a ser atingido pela onda moralizadora, uma vez que seu nome aparece associado com a ¿Máfia da Gasolina¿, e foi acusado de usar laranjas na compra de vários postos de combustível no Rio.

A decisão da Comissão de Constituição e Justiça de rejeitar a emenda de suspensão temporária do deputado foi ratificada em plenário no dia 14 de abril, iniciando-se a votação da proposta original de cassação do mandato parlamentar. Aberta a urna e contados os votos, constatou-se que a maioria dos deputados (37) se posicionou contra a cassação, 25 votaram a favor da punição, um optou pelo voto em branco e um outro anulou seu voto. Favorecido pelo escrutínio secreto, Calazans, que uma vez mais mobilizara os fiéis de sua igreja ou sua base eleitoral para encher as galerias da Alerj, conseguiria manter seu mandato sem sofrer qualquer sanção.

Entre os que explicitaram publicamente a opinião contrária à cassação de Alessandro, além dos três integrantes da Comissão de Constituição e Justiça, já citados, encontravam-se Geraldo Caetano, Ely Patrício, Jodenir Soares, Andréia Zito, José Nader e Graça Pereira que compartilham da fé evangélica, ainda que estejam filiados a diferentes denominações religiosas. Os três primeiros pertencem ao corpo eclesiástico da Igreja Universal do Reino de Deus, e os demais são membros das igrejas Maranata e Presbiteriana. Como se vê, para além do espírito de corpo dos parlamentares, outra forma de corporativismo ajudou Calazans: o corporativismo religioso.

Ainda que se reconheça a pluralidade do mundo evangélico e a predominância dos pentecostais entre os 25 deputados que assumem a identidade religiosa evangélica na Alerj, não se pode deixar de reconhecer que o grupo que nos últimos anos vinha se apropriando da bandeira da ética na política começa a enfrentar dificuldades em se colocar como exemplo para a elite política brasileira. Calazans e Domingos Brazão não são os únicos envolvidos em escândalos. Carlos Rodrigues, ex-bispo da Universal, foi acusado de ter indicado o presidente da Loterj que em troca teria desviado verbas públicas para campanhas políticas dos integrantes do grupo político daquele parlamentar. Por outro lado, os nomes de pelo menos dois outros pastores da bancada fluminense ¿ José Divino e Almir Moura ¿ integram a lista, divulgada pela imprensa (¿Folha de S. Paulo¿, 28/03), dos deputados federais que estariam praticando nepotismo no Congresso Nacional.

Enfatizo essas associações para deixar claro que, se a pertença religiosa pode favorecer o desenvolvimento de uma ética da responsabilidade, não é de forma alguma condição suficiente para garantir o comportamento íntegro e responsável dos atores políticos. Nenhum grupo confessional tem o monopólio da ética na sociedade e os acontecimentos recentes sugerem que a utilização da identidade religiosa como atributo eleitoral pode acabar comprometendo as próprias instituições que, pelo menos no discurso, pretendem fornecer os marcos para o debate público sobre a moral contemporânea.

MARIA DAS DORES CAMPOS MACHADO é professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.