Título: A raiz da confusão
Autor: ISRAEL KLABIN
Fonte: O Globo, 29/04/2005, Opinião, p. 7

Caro amigo e velho companheiro Cesar Maia, sei muito bem da sua discordância sobre o tema da desfusão, que você tem mantido honestamente desde os anos 80, quando eu a tinha como missão primordial. Em verdade, ao assumir a prefeitura, foi essa a única razão que me fez sair da minha vida privada para uma missão pública, da qual você discordava, mas na qual eu acreditava. Não há novidade na sua postura. Porém, quero que você compreenda que a minha insistência na cobrança da indenização para a minha cidade dos dois estupros - a mudança de capital e a fusão - só pode ser compreendida pela população através de um projeto catalisador da população da cidade do Rio de Janeiro e da cobrança daquilo que nos é devido. Isso não é querer retornar ao passado para procurar soluções para o problema causado por esse mesmo passado.

Nenhum de nós, habitantes do Rio, pode negar a nossa responsabilidade pessoal pelas más escolhas que a população tem feito através do seu voto.

Nenhum de nós, habitantes do Rio, pode negar a sua indolência na reação àquilo que é conhecido por todos, ou seja, a ineficácia dos serviços de saúde, segurança, saneamento etc., o que apenas faz com que nós nos acomodemos no cenário pastoso e ingovernável no qual nós patinhamos.

A sua idéia de que a fusão foi válida - talvez o tenha sido dentro do propósito de alguns legisladores de então; porém, é inegável que a decapitação do Estado da Guanabara veio sem as indenizações e compensações adequadas para a adaptação dos nossos concidadãos num novo projeto econômico, social e político para a nossa cidade.

Você fala em São Paulo e outras cidades, capitais de estado, que se estabilizaram e se desenvolveram dentro do modelo municipalista. Isso, definitivamente, não tem nada a ver com o problema do Rio. São Paulo já era um município desde o tempo do Império e mesmo antes. O paulista de São Paulo continua sendo paulista, porém o carioca do Rio jamais será fluminense (a não ser em matéria de futebol).

A desfusão, no projeto feito no meu período de prefeitura, vinha acompanhada de decisões em nível federal, tanto em relação à economia do estado quanto ao modelo de governança. Hoje, possivelmente, esse modelo está ultrapassado e seria necessária uma revisão em todos os níveis de governança: econômico-financeiro, social e, sobretudo, ético. Será que conseguiríamos isso numa cidade onde os partidos políticos são, esses sim, totalmente confusos; onde a relação entre os três poderes (federal, estadual e municipal) se faz sentir através de conflitos cada vez mais evidentes?

O atual modelo de governança definitivamente não funciona. Você mesmo tem sido vítima disso, e nós todos, por conseqüência, sofremos os impactos diretos dessa desgovernabilidade. Projetos que nada mais fazem do que distrair a população da verdadeira causa dos seus problemas têm curta duração, seja o Pan-Americano, seja o Guggenheim, sejam várias boas idéias que não têm nada a ver com a realidade da nossa decadência.

O grande ausente e principal promotor dessa confusão (além de nós mesmos) é o governo federal, que nos prometeu, quando decretou a fusão, mundos e fundos. Nada aconteceu e nós não soubemos cobrar.

Estamos todos revoltados, porém num vácuo de identidade, num vácuo de governo, num vácuo de propósito e de missão. Tudo o que você falou no seu artigo sobre a duplicação de instituições governamentais como conseqüência da desfusão não pode fazer parte de um projeto de futuro. Em verdade, reconheçamos, trinta anos depois, o fracasso da fusão com relação ao antigo Estado da Guanabara. Mesmo que não tenhamos ainda propostas alternativas... como está não pode ficar. Mais ainda: quero crer que esse fracasso também se reflete no próprio Estado do Rio. Essa propaganda de altas taxas de crescimento não é verdadeira. Se retirarmos o crescimento da economia nutrida direta e indiretamente pelo petróleo, e que pouco tem a ver com qualquer iniciativa do governo do estado, pouca coisa resta.

Você é um hábil economista e um excelente gestor financeiro, conforme provou na sua primeira gestão. Porém, tenho sérias dúvidas de que você consiga reproduzir o sucesso do passado dentro da conjuntura atual, em que mazelas, corrupção e, sobretudo, a invasão da "cidade legal" pela "cidade ilegal" nos fazem ver que é urgente um novo modelo e novas gerações de governantes que abominem o que foi e está sendo feito, e que tenham força e respaldo popular e político suficiente para mudar as coisas.

Fusão, desfusão ou confusão - possivelmente nenhuma delas seria uma solução (desculpe a péssima rima). Creio que estamos próximos a uma revolta da qual sabemos as razões que a deflagrarão. Será que sabemos o que propor como alternativa? Não se iluda. Estamos próximos de uma intervenção federal no modelo que já foi visto no Espírito Santo. Seja lá fusão ou desfusão, o que a população espera é uma proposta implementável e responsável de gerenciamento e desenvolvimento para a nossa cidade e que sobretudo a traga para uma convivência ética entre a população e o governo.

Se a desfusão vem a ser uma possibilidade, por que não? Se é um pacto federativo que nos trará harmonia entre os poderes federal, estadual e municipal, por que não? Se ele nos trará eficiência nos serviços e nos devolverá a identidade e o espírito carioca, por que não? Olhemos o destino da nossa cidade de frente, em termos de presente e de futuro, seja através de instituições políticas, seja através da cobrança do que nos é devido.

É claro que a interatividade e a integração da região metropolitana deverão estar presentes na estratégia a ser seguida, bem como outros fatores e obstáculos que foram acrescidos nesses últimos trinta anos, o que sem dúvida dificulta soluções simplistas.

Assumir o presente é fácil e apetitoso. No entanto, organizar o futuro e sobrepujar enormes pressões das corporações decadentes e corruptas que nos governam é bem mais difícil.

Meu caro Cesar, seja um herói do futuro e não um cidadão acomodado num presente que ninguém quer.

ISRAEL KLABIN foi prefeito do Rio de Janeiro e é presidente da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS).