Título: Esboço de um candidato
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 30/04/2005, Panorama Político, p. 2

O que se deve dizer primeiramente da entrevista coletiva do presidente Lula é que ela instaura uma boa prática democrática, devendo ele mesmo estar se perguntando por que resistiu tanto. Já o conteúdo e a forma despertam indagações sobre o efeito que podem ter sobre a política interna, pois tanto os adversários como os aliados tiveram uma amostra do que será o candidato Lula em 2006 e levarão isso em conta ao montar suas estratégias.

As considerações de ordem econômica também foram muito importantes, particularmente a afirmação de que a taxa de juros não deveria ser o único instrumento usado para controlar a inflação. Ainda que se possa enxergar nela alguma inquietação do presidente com a política econômica ¿ apesar da declaração de ser ¿unha e carne¿ com Palocci ¿ ele mesmo tratou de neutralizar receios ao assegurar que não fará pacotes nem planos pirotécnicos.

Mas no conjunto da apresentação, enfrentou com naturalidade e bom humor todas as perguntas, tendo argumentos e números na ponta da língua, alguns contestados pela oposição, mas outros até subestimados em desfavor do governo. Escapou de cascas de bananas, apesar de uma ou outra expressão desnecessária, dosou a franqueza e foi sutil nas farpas contra adversários. Ufanista no limite, admitiu que o governo erra muito e apontou três. E, ao fazer isso, traçou o esboço do candidato que disputará a reeleição no ano que vem. No ensaio, mostrou que terá discurso para a prestação de contas e munição para ir ao combate na ofensiva.

Tomemos a reação de um adversário, o aguerrido líder do PSDB no Senado, Arthur Virgílio, que qualificou a entrevista de ¿marqueteira¿, o que não deixa de ser um sinal de preocupação com seu conteúdo e seus possíveis efeitos. Os demais líderes da oposição caíram sobre os números dados por Lula.

Já um aliado, o deputado Miro Teixeira, avaliou que a performance de Lula foi tão boa que pode influir até sobre o quadro de candidaturas para 2006:

¿ Acredito que o número de candidatos vai se reduzir a partir desta demonstração de que haverá um craque no jogo, com todas as condições para ter o domínio da bola.

Uma mistura de otimismo com desejo, se levarmos em conta que desta vez PFL e PSDB estão dispostos a ter candidatos distintos no primeiro turno, que Garotinho pode entrar no páreo e que haverá maior número de candidatos pela esquerda, ainda que não competitivos. São as lascas produzidas pela decepção com o PT.

Mas há o outro lado, que é a percepção da entrevista pelos aliados, especialmente pelos vacilantes, que vêm cometendo seguidos atos de infidelidade e mesmo de traição ao governo, alimentados em grande parte pelas dúvidas sobre as chances de reeleição de Lula. Os elogios vieram de petistas como o líder Chinaglia e dos aliados firmes como Sarney e Renan Calheiros. Os outros, se tiverem achado também que Lula mostrou ter bala e verbo na agulha como candidato, podem buscar o realinhamento. A indisciplina da base governista é hoje o maior problema do governo.

Mas assim como o verbo de Lula pode ser apenas um trunfo na reeleição, cujas dificuldades vêm sendo apontadas pelo próprio ministro Dirceu, o realinhamento e a construção das alianças dependem de outros fatores, que vão do cumprimento de acordos à mudança de atitude do PT em relação aos aliados.

Aos partidos, é natural esta leitura eleitoral da entrevista. Já os cidadãos viram apenas o presidente da República respondendo a perguntas livremente formuladas sobre a atuação de seu governo. E isso foi o mais importante.

Quem bem conhece o ministro Dirceu acha que vem aí um surto de queixumes. Lula rasgou elogios a Palocci e a outros ministros mas não o citou na entrevista coletiva.

Festejando o Parlamento

Numa hora nada boa para a imagem do Legislativo, o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, descobriu o Dia do Parlamento, 3 de maio. Nunca antes celebrada, a data dará ensejo a uma vasta programação voltada para a valorização do Legislativo na construção da democracia, com destaque para as atividades de fiscalização do Executivo e aprovação do Orçamento, além da tarefa legislativa. A maratona cívica culmina com uma sessão solene na manhã de terça-feira. Assembléias legislativas e câmaras de vereadores foram incentivadas a seguir a onda. Material didático sobre o tema foi preparado para as escolas e está disponível no portal da Câmara (www.camara.gov.br). A programação inclui debates com cientistas políticos, exposições, conferências e apresentação de vídeos, inclusive o que reproduz a fala de Ulysses Guimarães na promulgação da Constituinte.

No meio das festas, Severino deve tomar uma medida prática que pode ajudar mais no retoque da imagem da Casa: a votação da cassação do deputado André Luiz, apesar da pauta trancada por MPs. Entendeu ele que medidas não legislativas não são afetadas pelo trancamento.