Título: A perda da pauta
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 01/05/2005, O Globo, p. 2

Ficou estabelecido que o presidente Lula admitiu três erros do governo na entrevista coletiva de anteontem. Na verdade, dois e meio, pois em relação ao maior deles na área política ¿ seu pouco empenho pelo resultado da disputa da presidência da Câmara ¿ Lula disse que ¿possivelmente foi um erro¿ e que a História também fará esta pergunta. Administrar as conseqüências deste erro é hoje o maior desafio de Lula e, no entanto, as questões políticas foram suplantadas pelos temas econômicos ao longo da entrevista.

Nada mais indicador de que a economia passou mesmo a governar a política. O que aconteceu depois da vitória de Severino Cavalcanti foi a perda do controle da pauta de votações pelo Planalto. Com isso vieram algumas derrotas e por fim o recuo do governo para a obstrução defensiva. Isso há duas semanas, quando Severino ameaçou pôr em votação, isoladamente, a emenda que aumenta em 1% a cota dos municípios no fundo de participação. O absurdo desta situação é que o governo incluiu este dispositivo na reforma tributária para torná-la mais palatável, e acabou se tornando prisioneiro da concessão. Para não vê-la aprovada sem o resto do projeto, o que lhe deixaria apenas uma conta para pagar, partiu para a obstrução. O acúmulo de MPs fez o resto e não se vota mais nada.

Antes da eleição, pelo visto, o governo não se deu conta do que significaria perder o controle sobre a pauta. Depois, parece ter acreditado que Severino cairia facilmente no papo. Agora, parece fingir que é possível ir levando esta situação sem tomar providências. O pefelista José Carlos Aleluia, líder da minoria na Câmara, que foi de fato o candidato de oposição naquela disputa, diz nunca ter visto situação igual em seus dez anos na Câmara. Nem eu, nos 23 anos em que acompanho as atividades do Congresso. Aleluia chega a dizer que ele mesmo, se vitorioso, garantiria a independência da Casa mas nunca o colapso do processo legislativo.

Na entrevista coletiva, ao falar da eleição de Severino, Lula começou dizendo que ele era um aliado, provocando a réplica irônica da repórter Zileide Silva. ¿O senhor acha?¿. Passou depois ao discurso de que o presidente da República não escolhe o presidente da Câmara, devendo manter com ele bom relacionamento, seja de que partido for. Bonito mas na prática também a história é outra.

¿ Deste jeito, chegaremos ao ponto em que nem as medidas provisórias terão utilidade. Vão começar a cair em série por decurso de prazo. O que seria isso, senão a ingovernabilidade? ¿ pergunta Aleluia.

Mas qual é o remédio? Há o mais banal: a integração de Severino ao governo, entregando-lhe o ministério que Lula negou, corretamente, após um ultimato em praça pública. Naquela hora, se nomeasse Ciro Nogueira estaria entregando os anéis da autoridade. Mas depois, teria que ter retomado em outras bases a conversa com o PP e seu novo prócer, Severino. O preço é alto? Pode ser, mas prejuízos maiores estão se acumulando.

Tem outro remédio, mas de fórmula mais complexa. E falta quem se disponha a ministrá-lo. Teria o governo que dar um soco na mesa, dispensar os infiéis, tomar-lhes os cargos, reunir sua manada fiel, tenha ela quantos votos tiver, e a partir disso reassumir o controle do processo político na Casa. Mas quem fará isso? Aldo Rebelo, o coordenador político, depois de mantido no cargo ficou ainda mais conciliador. Dirceu vem operando apenas no que diz respeito ao PT, por orientação do próprio Lula. Agora então, recebe uma missão externa atrás da outra. Para enfrentar Severino ¿ hoje o político mais conhecido do Brasil depois de Lula e de Fernando Henrique, não importa com que imagem ¿ o governo teria que contar com uma tropa de líderes disposta a virar a mesa. Mas eles continuam insatisfeitos e queixosos com tudo.

A entrevista de Lula, se tiver tido sobre eles um efeito-demonstração positivo, mostrando-o como um candidato altamente competitivo, como pareceu a alguns, pode contribuir para o realinhamento. Mas outras providências terão que ser tomadas, a começar pelo cumprimento dos acordos que o governo faz e esquece. Acordos que envolvem, quase sempre, nomeações e liberações de emendas.

Nesta marcha, a próxima derrota do governo na Câmara, depois da reforma tributária, já está anunciada: a verticalização das coligações vai cair, e com isso Lula verá os partidos de sua base partirem para as mais diferentes composições nos estados. Apesar do discurso afiado, terá problemas de palanque. Mas estas questões não motivaram os jornalistas e menos ainda o presidente.