Título: A vida do outro lado da fronteira
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 01/05/2005, O País, p. 3

Brasileiros pagam até US$10 mil e desafiam vigilância para imigrar

Aensão da espera foi mais enervante para Alberto do que a própria travessia do Rio Grande, flutuando numa bóia feita de câmara de ar de pneu de caminhão.

Primeiro foram quatro dias em Matamoros, cidade mexicana junto à fronteira com os Estados Unidos, aguardando o coiote ¿ o contrabandista de pessoas ¿ anunciar que chegara a hora. Depois, cerca de três horas no mato, cuidando para não ser picado por formigas, atento à presença de cobras, esperando o assovio ou um curto flash de lanterna do outro lado do rio, no fim da madrugada.

Por fim, hora e meia agachado num campo de girassóis, coiote ao lado, já nos EUA, à espera de uma caminhonete que o levaria à uma ¿casa de paso¿, um refúgio de ilegais mantido pela bem azeitada rede de coiotes contratada por Alberto, onde descansou por dois dias antes de seguir viagem.

Sua aventura custou US$7 mil. O preço varia conforme a rede de contrabandistas e, obviamente, segundo os serviços prestados. Brasileiros têm pago de US$2 mil a US$10 mil:

¿ Essa é a hora da verdade: quando você chega à fronteira. Será que vão cumprir o trato? Será que não vão me largar sozinho no meio do rio? Será que do outro lado vão roubar o pouco que me sobrou? ¿ relembrou ele em voz alta, já tranqüilo, à espera do ônibus que o levaria a Boston, narrando a angústia vivida dias antes.

Paco, que se apresentara como o seu facilitador, ajudava Alberto, de 27 anos, a fazer uma chamada a cobrar para seu irmão, em Boston, avisando-o do horário de sua chegada.

Formado em arquitetura, sem chances de obter um trabalho à altura de suas habilidades, Alberto é um entre centenas de brasileiros que têm cruzando diariamente, de forma ilegal, a fronteira entre México e EUA. Desde outubro passado as autoridades americanas têm detido, em média, 75 brasileiros por dia.

Segundo suas próprias estimativas, para cada pessoa detida outras três conseguem ¿ como Alberto ¿ ludibriar a Patrulha de Fronteira e seu aparato tecnológico, que vai de sensores que captam o calor humano, instalados na mata às margens do Rio Grande, até as câmeras no alto de torres instaladas na região.

Câmaras equipadas com visão noturna

Elas enxergam com nitidez qualquer movimento a até 1.600 metros de distância, enviando imagens para 58 telas na sala de controle que os agentes dispõem em Brownsville, no Texas. Elas também vêem à noite, por meio de raios infravermelhos.

Somente nesse estado há 1.500 agentes rondando a fronteira 24 horas por dia em jipes, caminhonetes, helicópteros, lanchas, bicicletas ¿ e até cavalos, nos dias de muita chuva, quando o terreno torna impraticável o uso de veículos. Boa parte deles têm sobrenomes como Garcia, Rodriguez, Cervantes, Salazar, Castillo, que evidenciam uma origem semelhante à das milhares de pessoas (a maioria do México e da América Central) que tentam furar o cerco armado por eles.

Mas Ernesto Castillo, chefe da Patrulha de Fronteira em Brownsville, diz que o peso da história familiar não amolece corações na hora de agarrar alguém da mesma nacionalidade:

¿ Não... não é difícil para nós agarrar pessoas com uma origem como a nossa. Nasci aqui, do lado de cá da fronteira. Meus avós eram mexicanos, mas vieram para este país da maneira correta, legalmente. Estamos aqui para fazer com que as leis sejam cumpridas ¿ disse Castillo.

No entanto, segundo ele, os agentes andam mais preocupados em apreender outro tipo de intrusos:

¿ Não há dúvida de que a fronteira é muito porosa. A nossa missão prioritária hoje em dia é agarrar terroristas e apreender armas e concentramos todos os esforços nesses objetivos. Nosso pessoal agora porta armas mais sofisticadas justamente por esse motivo. Não é para atirar em imigrantes ilegais, mas para enfrentar contrabandistas de armas e terroristas.

Intimidação é a palavra de ordem

A estratégia é clara e se resume numa palavra: intimidação. Isso explica a ostentação da Patrulha de Fronteira nos pontos considerados ¿mais populares¿ para a travessia, como dizem os agentes referindo-se aos lugares preferidos pelos coiotes. Ali há uma presença mais constante de homens uniformizados, armados até os dentes; além de focos potentes de luz acesos durante toda a noite.

O trecho do rio sob a ponte Gateway, que liga Brownsville a Matamoros, é um dos pontos mais visados. O Rio Grande faz uma curva estreita ali, nada mais do que dez metros. A atenção está naturalmente mais voltada ao movimento de veículos e o constante fluxo de pedestres ¿ basicamente mexicanos que têm um cartão autorizando visitas diárias ao lado americano, para compras ou trabalho.

Coiotes espreitam nas imediações à espera de um cochilo eventual dos agentes, para lançar ao rio o seu rebanho de imigrantes. Por isso, a área é reforçada no início da manhã e fim da tarde, quando a movimentação é mais intensa sobre a ponte. Outro ponto visado pela Patrulha de Fronteira fica quatro quilômetros rio acima, onde rochas salientes ¿ que vão de uma margem à outra ¿ permitem que as pessoas repitam o milagre de caminhar sobre as águas.

Em alguns trechos estão fincados alertas emblemáticos sobre os riscos: cruzes marcam os túmulos de aventureiros mortos por cobras venenosas ou afogados em meio à travessia.

A Patrulha de Fronteira está intrigada com as repentinas ondas de brasileiros. Os agentes querem saber o que os leva a buscar ilegalmente o sonho americano. O fato de virem em grupos, fáceis de serem descobertos, já foi entendido:

¿ Certamente chegou ao Brasil a notícia de que não botamos brasileiros na cadeia, não é ? ¿ indaga Castillo.

Não há espaço suficiente nas cadeias e muito menos verbas para a deportação de todos. Por isso, eles recebem uma notificação para se apresentar a um juiz, num prazo entre quatro e seis meses, e são liberados. Mais de 70% jamais cumprem a ordem.

¿ A docilidade dos brasileiros é fora do comum. Você os aborda na rua, às vezes ainda molhados da travessia, e ninguém corre, ninguém tenta fugir. Levantam as mãos e falam: ¿Migración¿. Está claro que querem se entregar para receber a notificação e ir embora. Muitos acham que o papel é um documento que garante sua permanência ¿ diz Ricardo Gorena, o chefe de polícia de La Joya, cidade texana às margens do Rio Grande.

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