Título: Depois da travessia, a aflição de viver inseguro
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Globo, 01/05/2005, O País, p. 8

Imigrantes sofrem com possibilidade de serem pegos sem documentos, ameaças de xenófobos e saudade da terra natal

BOSTON. Do lado de fora de um sobrado de madeira igual a tantos outros em Salem, região da Grande Boston, uma bandeira americana está fincada no chão. Não tremula em mastro nem saúda da janela, como em tantas outras casas do bairro. Apenas marca presença encostada à cerca, como que pedindo desculpas. Ou proteção. São tempos de aflição para os moradores da casa, todos brasileiros não documentados que conseguiram fazer a travessia pelo México.

Três das moradoras recém-chegadas ainda não se aventuram sozinhas além da soleira da porta. Curioso, à primeira vista, que tenham receio de dar esses primeiros passos americanos quando acabam de fazer uma travessia tão mais arriscada e radical: largaram a vida que levavam em Guanhães (MG) e conseguiram chegar a Salem (estado de Massachusetts) como carga humana ilegal desse comboio migratório que parece não ter fim. Agüentaram tudo: terror, medo, cansaço, arrependimento, sede, fome, constrangimento. Foram achacadas pelos coiotes e pela polícia mexicana. Foram flagradas pela polícia americana quando já tateavam no mato do Texas, à noite. Foram presas, com o grupo todo, freqüentaram três postos de detenção distintos, foram fichadas e liberadas com data marcada para responder a processo. Até lá, estão em condição perfeitamente legal no país.

Mineiras sentem falta dos filhos

Mas é só agora, decorridos vários dias desde o fim de uma travessia pontuada de ordens e comandos ¿ na qual o migrante se move como autômato, sem decidir nada ¿ que as três mineiras olham à sua volta com olhos próprios. E vêem a terra estrangeira na soleira da porta. Ilma tem 25 anos e veio ao encontro do marido, que migrou há menos de um ano. A cunhada Silvana, de 34, também.

¿ Se a gente não vier o casamento acaba ¿ explica.

Ambas decidiram deixar os filhos pequenos em Guanhães para não expô-los aos riscos da travessia ilegal. Estão sangrando de saudade. E só pensam em voltar. Ildeane, irmã caçula de Ilma, é a única solteira do grupo. Está paralisada de saudade da mãe.

Só quando os maridos, cunhados e demais ocupantes do casarão retornam do trabalho, elas recebem da rua as notícias do mundo migrante. As novidades dos últimos dias têm sido acachapantes. Primeiro, houve o caso da noiva de um colega de trabalho do marido de Silvana. O noivo estava exultante pois a amada conseguira atravessar a fronteira ilesa. No domingo o casalzinho foi agradecer ao Senhor na missa das 7h freqüentada pelos brasileiros de Peabody, outro enclave de migrantes da região. Quatro dias depois, a noiva ainda adolescente (17 anos) estava na cadeia, condenada a dois anos de prisão ¿ ou a pagar US$100 mil de fiança ¿ por ter atropelado um policial americano. No dia do acidente, ela estreava no volante de um carro para poder começar a trabalhar. O noivo, já endividado em US$10 mil pela travessia ilegal da jovem, agora precisa de outros US$10 mil (10% da fiança) para pagar os custos do processo e da detenção.

Ildeane e Silvana não sabem dirigir. E sabem que sem essa ferramenta não conseguirão ser faxineiras nem entregadoras de jornais ¿ os dois tipos de emprego para os quais sempre há vagas. Logo que chegaram a Salem foram agenciadas por uma brasileira que se prontificou a levá-las e buscá-las nos casarões que deveriam limpar. Em dupla ¿ faxineiros brasileiros sempre trabalham em dupla ¿ receberam a tarefa de fazer a limpeza de onze casarões da região. Onze. Num mesmo dia. Faxinaram das 7h da manhã às 10h da noite e ganharam US$60.

¿ Como é que eu vou reclamar se meu marido ganhava a mesma coisa, só que por um mês inteiro de trabalho, quando a gente vivia em Guanhães? ¿ pergunta Silvana, que morava numa rua sem calçada e casa sem reboque.

Mas foi uma exceção. Por não terem carro próprio, a oferta de emprego secou. Sabem que precisam aprender a dirigir para não ter abortado o sonho americano. E mesmo quando aprenderem, circularão por aí sem carteira de motorista, ou com carteira falsa, aumentando a legião de migrantes não documentados que dirigem com o coração na mão.

¿ Só de sentar no volante a gente já passa mal ¿ diz Ildeane, a mais destemida.

Na tarde da última quinta-feira Ilma, Ildeane e Silvana passavam os olhos sobre as manchetes do jornal ¿@ Notícia¿, de circulação gratuita entre os brasileiros de Massachusetts: ¿Carro de brasileira é apedrejado em Framingham¿, ¿Comunidade combate sentimento antiimigrante¿, ¿Superlotação faz Imigração soltar 232 brasileiros presos no Texas¿, ¿A América da TV e a da vida real¿, ¿O imigrante brasileiro atravessa o seu momento mais delicado nos EUA¿.

Mesmo sem conhecer a saga das 19 mulheres de Salem acusadas de feitiçaria e enforcadas em 1692, as três mineiras tinham calafrios com o caso da líder comunitária que teve o jipe Cherokee apedrejado no quintal de sua casa.

Brasileira foi ameaçada

A ativista Ilma Paixão, presidente da Brazilian American Association (Bramas), atua em Framingham, município de maior concentração de brasileiros nos Estados Unidos. Framingham, pertinho de Boston, também é a cidade da costa leste em que o grupo de vigilantes CCFIIle, de forte coloração xenófoba, atua com mais violência. (A sigla, em inglês, significa Cidadãos e Amigos Dedicados à Defesa das Leis contra a Imigração Ilegal). Há meses a brasileira vinha recebendo ameaças, sendo seguida e ostensivamente fotografada e filmada. Apresentou queixa à polícia local, denunciou a situação ao ministro Jaques Wagner (do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social), por ocasião de sua recente passagem por Boston, e comunicou o fato ao consulado do Brasil por se tratar de ameaças contra uma cidadã brasileira em território estrangeiro. Sempre sustentou que o imigrante, documentado ou não, não deve se curvar a abusos ou ameaças.

¿ Não sei se algum outro brasileiro foi agredido, porque muitos temem represália. Mas a atitude correta é denunciar na polícia qualquer ato covarde e de violência ¿ declarou após o apedrejamento de seu carro na semana passada. Considerando-se que o grupo xenófobo de Framingham é ligado ao movimento de vigilantes que há um mês vasculha a fronteira com o México à caça de imigrantes, o risco de fervura desse extremismo passou a ser menos abstrato.

Ex-faxineira é hoje empresária

Fim de tarde em Salem. O proprietário da casa que abriga as três mineiras e outros cinco brasileiros no segundo andar não mora mais ali. Desocupou o porão, que alugava para outros imigrantes, depois de ter sido denunciado por vizinhos ¿ o número de residentes excedeu o permitido. Ilma, Ildeane e Silvana recebem a visita de Val, que chega a bordo de um flamejante jipão Chrysler. Val pode se orgulhar de ter feito a América: chegou com o marido há seis anos, iniciando a vida de imigrante fazendo faxina, como tantos. Hoje é empresária. E comemora a compra da primeira casa própria em território americano: uma mansão antiga na costa de Massachusetts, coisa de U$500 mil, financiada em 30 anos.

Apesar de bem-sucedida e plenamente integrada ao país de adoção ¿ sempre teve todos os papéis em ordem ¿ Val acaba de fazer um seguro de vida para a eventualidade de ela ou de o marido virem a morrer em terra estrangeira.

¿ Volta e meia tem o caso de alguém que morre por aqui mas não deixa dinheiro para o corpo ser levado até o Brasil. O traslado custa entre US$8 mil e US$20 mil, então começa uma vaquinha entre brasileiros para pagar a conta. Não quero que isso aconteça conosco ¿ explica.

Ser enterrada nos Estados Unidos? Nem pensar.

Objetivo é ter casa no Brasil

Ilma, Ildeane e Silvana escutam. Nenhuma cogita viver, muito menos morrer nos Estados Unidos. Querem apenas trabalhar.

¿ Vim com o objetivo de ajudar meu marido até a gente poder comprar uma casa no Brasil ¿ diz Silvana.

Coisa de dois, três anos no máximo. O atravessador lhe ofereceu trazer o filho único de 4 anos por ¿apenas US$3 mil a mais¿, abatimento considerável sobre os habituais US$10 mil por cabeça do mercado. Declinou categoricamente.

¿ Lá em Guanhães eu sei que pelo menos ele está comendo, bebendo e dormindo em família. Como é que eu iria cuidar dele nesta terra?

Ilma, que também deixou dois filhos pequenos com os avós, concorda.

¿ Tem gente que usa bebês só para poder passar direto na Imigração ¿ comenta indignada, referindo-se à norma americana de não reter mães com filhos pequenos que caem na malha fina: retêm-se os passaportes, emite-se a convocação com data de apresentação na Justiça e libera-se a família que entrou ilegalmente.

Para quem nunca tinha saído da terrinha mineira nem andado de avião nem assistido a um filme em sala de cinema ¿ não existem cinemas em Guanhães ¿ o salto para a América desse Brasil migrante só não é maior do que a aventura de recomeçar uma vida em bases tão movediças.

¿ Tem dia que eu deito na cama e penso ¿é agora que eu vou morrer¿, mas a vida é muito maior do que os medos da gente ¿ constata Ilma.