Título: O MEDO CHEGA AOS TRIBUNAIS
Autor: Elenilce Bottari
Fonte: O Globo, 01/05/2005, Rio, p. 18

Juízes discutem mudanças na lei para evitar que temor de represálias influencie jurados

Quinta-feira passada, dia 28, 10h. Começa o julgamento de mais um processo de homicídio envolvendo traficantes na Baixada Fluminense. Menos de 15 minutos depois, o juiz é obrigado a suspender a audiência para substituir uma jurada que passa mal. Ela ouvia a leitura dos autos quando descobriu que é vizinha de rua dos acusados. Entrou em pânico. O medo dos jurados de serem reconhecidos por cúmplices e parentes de réus envolvidos com o tráfico ou grupos de extermínio é flagrante no dia-a-dia dos tribunais do júri do Rio. E vem levando juízes, promotores e até jurados a discutirem mudanças na lei.

Muitos defendem a transferência para outros municípios ou para a capital do julgamento de casos mais graves, envolvendo grupos de extermínio ou quadrilhas de tráfico de drogas, para evitar que o medo possa influenciar na sentença.

Uma preocupação que levou o juiz Luiz Felipe Negrão, da Comarca de Belford Roxo, a enviar à deputada Denise Frossard (PPS-RJ) uma proposta de projeto de lei, alterando o estatuto do desaforamento (que permite a transferência de um julgamento para outra comarca). O artigo 424 da Lei de Processo Penal admite a mudança de fórum nos casos em que houver riscos para a integridade do réu.

¿ É até uma visão romântica. Essa lei é da década de 40, quando não havia sequer a hipótese de ameaças a qualquer membro da Justiça, ainda mais por réus presos. Hoje a realidade é outra. Estamos julgando grupos de extermínio, policiais, quadrilhas de traficantes. E, dependendo do caso, o desaforamento é necessário para garantir segurança e isenção no julgamento do processo ¿ afirmou o juiz.

A jurada que passou mal na última quinta-feira explicou, ao deixar a sala de audiências, que na rua onde vive, quando acontece algum problema, não pode sequer chamar a polícia. Tem que pedir socorro ao tráfico.

¿ Assim que cheguei ao tribunal tive a impressão de que conhecia alguns dos acusados. Quando ouvi o juiz dar o nome da rua em que moro, senti o corpo gelar e a vista escureceu. Pedi para sair. Na outra quinta-feira, quando cheguei em casa após o julgamento, percebi que uma das testemunhas morava quase ao meu lado. Ainda bem que o réu foi absolvido.

Na última quinta-feira, O GLOBO ouviu dez jurados de uma mesma comarca na Baixada Fluminense. Destes, cinco defenderam a mudança de fórum nos casos que envolvem grupos de extermínio ou traficantes reconhecidamente perigosos. Com apenas três meses como jurada, a funcionária pública C. contou que no início chorava durante a audiência:

¿ No início foi horrível. Parentes dos réus e outros ficavam fazendo gestos para a gente, como quem diz ¿presta atenção no que está fazendo¿. Depois fui me acostumando. Há júris mais complicados, outros menos.

B., de 24 anos, é jurada desde o início do ano. Ela lembra que seu pai tentou proibi-la de participar:

¿ Meu pai não queria de jeito nenhum. Dizia que é muito perigoso. Mas agora estou realmente gostando. É importante para nossa comunidade. Eu tenho medo, mas acho que, se está provado que o réu é criminoso, tenho o dever de condená-lo.

Fiscal do município, T. diz não ter medo. Mesmo assim defende o desaforamento em alguns casos de maior repercussão. Com dois anos fazendo júri na Baixada, T. lembra que no primeiro ano havia uma jurada que passava mal assim que ouvia a leitura dos autos:

¿ Quando ela via que se tratava de julgamento de policial ou grupo de extermínio, passava mal. O juiz acabou por dispensá-la.

`A Justiça não pode se encolher¿, diz juiz

Responsável pela Comarca da Ilha, onde o tráfico comete a maior parte dos homicídios, o juiz Flávio Marcelo de Azevedo Horta Fernandes é contra a mudança. Para ele, a Justiça precisa estar perto da comunidade:

¿ Se nos mostrarmos atemorizados, a criminalidade aumenta. A Justiça não pode se encolher. Tem que estar presente na comunidade. Com a condenação de vários traficantes, os índices de criminalidade na Ilha vêm caindo ¿ afirma o magistrado.

Para resolver o problema do medo no júri, o juiz seleciona seus jurados entre militares da reserva e estudantes de direito:

¿ Os militares da reserva, além de maior experiência, são menos assombrados ¿ diz ele.

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