Título: FALSO DILEMA
Autor: Helena Chagas
Fonte: O Globo, 02/05/2005, O País, p. 4

Em três meses e 31 viagens, o chanceler Celso Amorim esteve em 29 países. Com exceção de Nova York e Davos, os demais 27 destinos foram países em desenvolvimento da América Latina, África e Oriente Médio. A maratona rendeu ao ministro o apelido de ¿Duracelso¿ (pilha de longa duração), dado pelos próprios assessores. A opção pelos pobres vem assustando muita gente.

Afinal, a prioridade na busca pelos mercados de países em desenvolvimento ¿ com alguns dos quais nossas relações comerciais eram até então insignificantes ¿ poderia acabar resultando em perda de espaço nos maiores mercados mundiais. A mudança de foco e o risco de afastamento de parceiros tradicionais e importantes, como os Estados Unidos, apavoraram alguns setores. Tudo isso, somado a posições de política externa mais ousadas nos fóruns internacionais, à paralisação das negociações da Alca e a uma nítida ambição do país de ocupar papel de liderança na América do Sul, acirrou as críticas.

Nos últimos dias, porém, começa a ficar claro que as coisas podem não ser bem assim, tão a ferro e fogo, preto no branco. No mínimo, o Itamaraty e demais agentes da política externa brasileira (agora são tantos...) vêm demonstrando talento na arte de dar uma no cravo, outra na ferradura. Nesse malabarismo, o próprio Celso Amorim rebate a acusação de antiamericanismo.

¿ Os números são uma resposta direta aos nossos críticos, pois no governo Lula o nosso comércio com os EUA só vem aumentando ¿ diz o ministro das Relações Exteriores.

Na verdade, nos três primeiros meses de 2005, comparados com o mesmo período no ano passado, o comércio Brasil-Estados Unidos cresceu cerca de 20%. Nos dois primeiros anos do governo do PT, as exportações para os EUA aumentaram em 30%, mais do que em todo o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, quando cresceram cerca de 10% (ao todo, nos oito anos de FH, houve um crescimento de 60%). E há hoje um certo equilíbrio nas exportações brasileiras: cerca de 21% vão para a América Latina, outros 21% para os EUA e mais ou menos 23% para a Europa.

Ao mesmo tempo, também, o país vem ganhando com a abertura de novos mercados em países em desenvolvimento. Há pobres que não são tão pobres e podem comprar nossos produtos. Há novos ricos, como a China, com extensos mercados a desbravar. Há pobres que produzem carvão, minério de ferro e outras matérias-primas prontas para serem compradas.

Para aferir se o mapa da política externa conferia com o mapa dos empresários brasileiros com vocação multinacional, Celso Amorim convidou um grupo de pesos-pesados da indústria para uma conversa há poucos dias no Itamaraty: representantes de empreiteiras como Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa, da Embraer, da Ambev, entre outros. O apoio à estratégia de incentivar o comércio e os investimentos no mundo em desenvolvimento foi quase unânime.

Afinal, minério de ferro e carvão não dão debaixo da Place des Voges, e nem do Empire State Building, como disse o empresário Roger Agnelli no encontro. É preciso ir aonde eles estão. Moçambique, por exemplo. Ou Angola, antes que a China e outros países espertos ocupem por lá todos os espaços com seus investimentos e crédito. É preciso vender aviões para a Arábia Saudita (na visita de Amorim ao Oriente Médio foi anunciada a compra de 15 da Embraer). E ônibus para o Catar.

O que não impede o Brasil de manter boas relações com os Estados Unidos, que parecem agora estar voltando um olhar mais atento para o andar de baixo do continente, conforme ficou claro na visita da secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, que se desmanchou em elogios ao governo brasileiro. Nem por isso Lula deixou de lado suas posições diferentes das dos EUA em temas delicados como o apoio à Venezuela de Chávez e à candidatura do chileno Manoel Inzulza nas eleições na OEA ¿ caso, aliás, em que acabou ficando do lado certo já que Inzulza será eleito hoje.

Ainda na linha do cravo e da ferradura, o Brasil, quem diria, retoma hoje, após longo e tenebroso inverno, as negociações para implantação da Alca. Será numa reunião de Amorim com o secretário de Comércio americano, Rob Portman, paralela ao encontro para discussões da Rodada de Doha, da OMC. Em Paris.

Que ninguém se iluda, porém, com essa escala da agenda do chanceler no circuito Elisabeth Arden: depois de Paris, a próxima parada é a Jamaica.