Título: A IGREJA, O PAPA E OS HOMOSSEXUAIS
Autor: PADRE LUÍS CORRÊA LIMA
Fonte: O Globo, 30/04/2005, Opinião, p. 7

Há portas que foram abertas. Aos que só virem um rottweiler,será inútil

A eleição do Papa Bento XVI gerou decepção e apreensão em alguns segmentos da sociedade e da Igreja. O homem que foi o esteio doutrinal de seu antecessor é rotulado por alguns críticos ferozes como "o rottweiler de Deus". Um dos focos da polêmica é a condenação das relações homossexuais e do casamento gay. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, lançado em 1992, tais relações são intrinsecamente desordenadas, antinaturais e reprováveis,

Em resposta, vários homossexuais têm acusado a Igreja de minar a sua auto-estima, impondo um enorme sofrimento psíquico a milhões deles, além de estimular o ódio social contra os homossexuais. Só no Brasil, argumentam, um deles é assassinado a cada dois dias por pessoas homofóbicas. Um saldo bastante lamentável.

Será que isto é tudo o que se pode dizer do novo Papa e a questão homossexual? Uma árvore pode esconder uma floresta. Basta que ela esteja perto de uma janela, tampando a paisagem. O observador deve ir além para conhecer a floresta escondida, sem medo de um suposto rottweiler.

De um modo geral, os últimos Papas têm seguido a moral sexual dos seus antecessores. Certos pontos, no entanto, merecem uma atenção especial. O Catecismo diz que "um número não negligenciável de homens e mulheres apresenta tendências homossexuais inatas. Não são eles que escolhem sua condição homossexual" (nº 2358). Há algo novo aqui. Isto significa admitir que algumas pessoas são estruturalmente homossexuais e que carregam esta condição por toda a vida. Não se trata, portanto, de algo que possa ser revertido ou "curado", como se fosse uma doença. Por muito tempo, assim foi classificada a homossexualidade pela Organização Mundial de Saúde.

Os homossexuais, prossegue o texto, "devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta". A homofobia é condenada. Ninguém tem o direito de agredi-los, xingá-los ou equipará-los a criminosos. E muito menos de fazê-lo em nome da Igreja. Houve um tempo, sim, em que a Inquisição prendeu e condenou homossexuais, usando o mesmo rigor com que combatia as heresias. Recentemente, a Igreja pediu perdão a Deus pelos pecados de seus filhos, pelas vezes em que se agiu com violência e intolerância em nome da fé. Assim se abre caminho para um futuro novo, que não quer mais repetir este passado. Já o Concílio Vaticano II, em que o teólogo Ratzinger atuou intensamente, tinha reconhecido a liberdade de consciência, o direito de a pessoa agir segundo a norma reta de sua consciência.

Há eventos na História que apontam mudanças na sociedade e nas mentalidades. Estas mudanças se dão em um processo de maior duração, com avanços e recuos. Os tempos modernos viram o abandono do universo geocêntrico. Aceitar que a Terra se mova no espaço é mudar de paradigma. Textos bíblicos afirmando que "a Terra está firme e inabalável" foram usados para refutar o movimento do planeta. Pouco a pouco, eles foram reinterpretados à luz da nova realidade que se impôs.

Isto não se deu sem dolorosos conflitos. De forma semelhante, o conceito de homossexualidade, surgido há menos de 150 anos, permite pensar a Humanidade como não sendo universalmente heterossexual, ao contrário do que sempre se imaginou. É uma mudança de paradigma antropológico. Isto traz conseqüências para a sociedade, a ciência e a religião. Talvez ainda leve muito tempo para que se dê conta das transformações em curso.

A postura da Igreja é rica e complexa, como a floresta escondida pela árvore. Algumas de suas posições, se forem descontextualizadas e repetidas com insistência, favorecem a intolerância. Outras posições, no entanto, favorecem a tolerância e o diálogo construtivo. A imagem da Igreja e dos Papas depende do que se retiver de seus gestos e palavras. Há portas que foram abertas. Aos que só virem um rottweiler, será inútil. Depende dos interessados trilhar o caminho que conduz ao respeito, à compaixão e à delicadeza.