Título: A AMEAÇA DA HEROÍNA
Autor: Antonio Werneck
Fonte: O Globo, 02/05/2005, Rio, p. 10

Quadrilhas usam o Brasil como rota do tráfico, mas já há dependentes no Rio

Há dois meses, um rapaz de classe média baixa procurou atendimento no ambulatório do Conselho Estadual Antidrogas (Cead), em São Cristóvão. Nenhuma novidade: referência estadual no acolhimento aos dependentes químicos de baixa renda no Rio, o órgão recebe uma média diária de 150 pacientes. O que surpreendeu daquela vez foi o diagnóstico. O rapaz era o primeiro caso registrado no Cead de dependência de heroína, droga alucinógena que tem na síndrome de abstinência seu efeito mais devastador. Ele procurava ajuda para pôr fim a uma cólica abdominal intensa, tremores e calafrios, alguns dos sintomas da abstinência da heroína.

¿ Realmente as dores provocadas pela abstinência a heroína são insuportáveis, o que acaba obrigando o dependente dessa droga a abusar muito do álcool. É uma droga muito perigosa ¿ contou Murilo Asfora, diretor do Cead.

O sinal vermelho que disparou agora no Cead merece há dois anos atenção especial de um grupo de policiais federais de Brasília, encarregado de monitorar a ação de quadrilhas de traficantes internacionais que usam o Brasil como rota de passagem da heroína. O assunto é tão sério que o setor de Inteligência Policial de Coordenação Geral de Polícia de Repressão a Entorpecentes (CGPRE) da Polícia Federal criou a Operação Plataforma depois que a Colômbia, grande produtor de cocaína, passou a produzir em larga escala também a heroína; e o México, outro grande produtor, intensificou o tráfico e passou a usar novas rotas, incluindo o Brasil.

Empresas estão sendo monitoradas

Os policiais, que atuam no combate ao tráfico de heroína em todo o país, monitoram de perto empresas de produtos químicos, suspeitas de ligações com essas quadrilhas. A Operação Plataforma tem tentáculos em outros países latinos e conta com recursos do governo americano, enviados ao país por meio de convênios firmados este ano entre a PF e a Drug Enforcement Administration (DEA), a agência americana de combate às drogas.

¿ A heroína é uma droga com efeito devastador ¿ diz o delegado federal Hebert Reis Mesquita, coordenador da Operação Plataforma.

Com uma média grande de atendimentos diários, o posto do Cead é especializado em acolher pacientes de baixa renda. Até então, pessoas com dependência de heroína não eram freqüentes nem mesmo nos consultórios particulares de médicos da Zona Sul. O primeiro caso no Cead pode demonstrar que a droga já está circulando, ainda que em pequenas quantidades. O fato há algum tempo chamou a atenção do psiquiatra Jorge Jaber, que viu o número de pacientes dependentes de heroína se multiplicar em seu consultório particular.

¿ O tráfico de heroína no Rio sem dúvida que está em fase de crescimento. E com um diferencial: é um tráfico clean, feito por traficantes com bom nível social, que não usam armas e dominam mais de um idioma. Antigamente, o dependente de heroína que aparecia nos consultórios do Rio era estrangeiro. Agora já existe o dependente que adquiriu seu vício no Brasil e consegue a droga aqui ¿ disse Jorge Jaber.

Para o psiquiatra, o que está acontecendo agora com a heroína tem o mesmo histórico da cocaína. Ele lembrou que nos anos 60 o consumo era preferencialmente de maconha. Nos anos 80, foi a vez da cocaína e, nos anos 90, das drogas sintéticas. O diretor do Cead, Murilo Asfora, concorda:

¿ Estamos passando de rota para consumidor de heroína, num fenômeno realmente parecido com o da cocaína ¿ afirmou Asfora.

Na estatística de atendimento do Cead também chama a atenção o crescimento do consumo de drogas sintéticas (como o ecstasy) e de derivados da cocaína como o crack (que não existia no Rio, ao contrário de São Paulo). Para se ter uma idéia do crescimento, no primeiro trimestre deste ano o Cead atendeu 65 pacientes dependentes de crack, um aumento de 160% em relação ao primeiro trimestre de 2004.

A heroína é uma variação da morfina, que tem uso médico. Ambas são produzidas a partir da resina extraída dos frutos verdes da papoula, da mesma forma que o ópio, que sempre foi muito consumido no Oriente. A droga passou a ser apreendida constantemente no Rio em 2000. A última apreensão aconteceu no sábado retrasado, no Aeroporto Internacional Tom Jobim, quando 11 quilos de heroína foram encontrados nas roupas de um boliviano. Avaliada em cerca de US$880 mil, foi a maior apreensão (de uma só vez) realizada no Rio e a segunda maior do país, só perdendo para a apreensão ano passado de 20 quilos da droga em São Paulo.

Segundo o delegado Hebert Mesquita, embora os 11 quilos de heroína estivessem a caminho da Europa, na grande maioria das apreensões realizadas pela PF no país a droga se destinava ao usuário interno.

¿ As estatísticas de apreensão em ¿portas de entrada¿ do país (Amazonas e Roraima) indicam que a heroína encontrada no Brasil (oriunda principalmente do México e da Colômbia) destina-se à satisfação de um mercado interno em franco crescimento, como os de Rio e São Paulo ¿ afirmou Hebert.

Duas rotas pelas fronteiras do Brasil

Segundo a Polícia Federal, o Brasil é caminho para a heroína em duas rotas. Numa delas, a droga entra pela fronteira em Tabatinga, no Amazonas, vindo de Letícia (Colômbia) e sendo transportada de barco até Manaus. Em seguida, os traficantes a levam para São Paulo, Rio e Recife. Outra alternativa das quadrilhas é entrar com a droga pela cidade de Pacaraima (Roraima), seguindo de carro até Boa Vista e de lá para o Rio, Recife e São Paulo.

Nos últimos quatro anos (de 2001 a 2004), quando as ações do tráfico de heroína aumentaram no Brasil, a PF apreendeu 200 quilos da droga. Nesse período as maiores apreensões ocorreram no Amazonas (42,78 kg), em São Paulo (39,1 kg), no Rio (30,58 kg), em Roraima (20,09 kg) e em Pernambuco (12,75 kg). No total foram presos nove brasileiros, seis colombianos, dois venezuelanos, um mexicano, um espanhol e um americano.

¿ Já temos nomes e endereços de empresas que fornecem produtos químicos para a destilação da droga ¿ disse o delegado Hebert.

Num apartamento em Copacabana, a PF prendeu há dois anos o colombiano Alberto Restrepo Herrera. Ele estava com 13 casacos e uma calça recheados com dez quilos de heroína. Na época, os policiais afirmaram que Restrepo seria integrante do Cartel de Cáli. Ele estaria no Rio para organizar um entreposto de heroína destinada aos Estados Unidos.

¿ O que mais chama a atenção é que a heroína pode custar até três vezes mais que a cocaína. Uma droga cara e para consumo de poucos ¿ disse o delegado Marcelo Nogueira, da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) da PF no Rio.