Título: VIETNÃ RECORDA A GUERRA AMERICANA
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Fonte: O Globo, 30/04/2005, O Mundo, p. 41

Governo fala de reconciliação com EUA, mas festeja 30 anos da tomada de Saigon

As palavras são de conciliação, mas os fogos de artifício que fizeram brilhar o céu de Ho Chi Minh ontem à noite revelam o verdadeiro espírito dos moradores da cidade que três décadas atrás era conhecida como Saigon. Há exatos 30 anos, helicópteros militares dos Estados Unidos atravessavam o mesmo céu levando os últimos americanos, enquanto as tropas do Vietnã do Norte tomavam a capital do Vietnã do Sul. O tanque 390 chinês destruindo o portão do palácio presidencial, ao meio-dia de 30 de abril de 1975, marcava o fim de mais de 15 anos de uma guerra entre o norte comunista e o sul apoiado pelos EUA, no conflito que no Vietnã é chamada de Guerra Americana.

A guerra, que chocou a sociedade americana ao matar mais de 58.700 soldados do país, destruiu uma geração de vietnamitas, que somam hoje pouco mais de 83 milhões. Estima-se que cerca de três milhões de combatentes vietnamitas dos dois lados morreram, além de aproximadamente quatro milhões de civis, além de centenas de milhares de feridos e milhões de pessoas deslocadas devido aos combates e aos bombardeios americanos. Ao todo, os EUA despejaram cerca de 300 mil toneladas de munição no país, mais do que em toda a Segunda Guerra Mundial, o maior conflito bélico da História.

Além dos mortos, centenas de milhares de pessoas, principalmente sul-vietnamitas temerosos (muitas vezes justificadamente) de represálias norte-vietnamitas ou da Frente de Libertação Nacional fugiram do país.

Apesar das cicatrizes, o governo comunista acenou com uma aproximação com ex-inimigos.

- O espírito de fechar o passado e olhar para o futuro tem sido mostrado pelo povo vietnamita, pelo governo e pelas políticas do partido (comunista, o único do país) àquelas pessoas do outro lado da linha de fogo, àqueles que ficaram no país e saíram dele, e àqueles estrangeiros que tomaram parte da invasão do Vietnã - discursou o primeiro-ministro Phan Van Khai, diante de 500 integrantes dos partido e ex-combatentes, sem deixar de agradecer também a países como China e União Soviética pela ajuda material durante a guerra.

Apesar das palavras, uma festa poucas vezes vista começou ontem na cidade que passou a ter o nome do líder comunista Ho Chi Minh pouco depois da fuga dos americanos. A ex-Saigon parou na noite de ontem, com dezenas de milhares de pessoas tomando as ruas no primeiro de dois dias de comemoração pela vitória comunista na guerra. O festival contará com cerca de 700 apresentações, incluindo números de dança, peças teatrais retratando (normalmente de forma propagandística) os momentos cruciais da guerra e até uma apresentação de uma orquestra sinfônica num imenso palco montado diante a Casa de Ópera construída pelos franceses, que ocuparam o país antes da invasão americana.

- Estou aqui com minha neta para poder mostrar-lhe o que fiz no passado - disse o vietnamita Hang Thi Mai, de 60 anos. - Todas as lembranças dos últimos 30 anos voltaram. Eu era uma das pessoas que participaram dos protestos contra o regime sulista (apoiado pelos EUA).

A data foi totalmente ignorada pelo governo americano, que oficialmente considera que sua missão no Vietnã terminou em 1973. Porém o país manteve tropas na capital sul-vietnamita para auxiliar na defesa do governo local e de sua embaixada até elas fugirem às pressas em imagens humilhantes para o orgulho dos militares americanos. Imagens que só não são mais conhecidas que as da menina vietnamita nua correndo numa estrada ardendo de dor depois de um ataque americano com napalm.

Porém, ex-soldados americanos veteranos do "atoleiro" marcaram reuniões para hoje para relembrar os anos de luta. Um grupo de 30 integrantes das últimas forças dos EUA a deixarem o Vietnã, pois faziam parte da guarnição da embaixada, fará uma manifestação em Washington.

- Rendemos homenagens aos que caíram e recordamos com honra os que combateram - disse Ken Crouse, hoje com 58 anos, e que estava dentro do penúltimo helicóptero americano a deixar Saigon.

Lendário general Giap diz que guerra agora é contra a pobreza

Desigualdade social choca comandante militar que venceu França e Estados Unidos

HO CHI MINH. Um dos principais homenageados das comemorações em Ho Chi Minh é um alquebrado senhor de 93 anos. O general Vo Nguyen Giap comandou os vietnamitas contra a França e as tropas norte-vietnamitas contra o Vietnã do Sul e os EUA, em duas campanhas vitoriosas. Idolatrado no país, Giap, no entanto, diz que chegou a hora de uma nova guerra no Vietnã, desta vez contra a pobreza.

- O Vietnã é heróico, mas continua sendo um país pobre - disse o velho general. - Agora temos de lançar um outro 30 de abril lutando contra a pobreza e o atraso para fazer o Vietnã mais forte e mais próspero.

Giap se tornou um mestre na guerra de guerrilha e em operações ousadas, nas quais muitas vezes sacrificava grande número de soldados para conquistar vantagens estratégicas, como a Ofensiva do Tet. Seu alvo hoje parece tão ambicioso quando nas guerras que liderou:

- Não acreditavam que o Vietnã pudesse derrotar franceses e americanos, mas conseguimos. Agora podemos vencer a pobreza.

A prosperidade sobre a qual fala Giap pode ser vista em Ho Chi Minh, a locomotiva financeira do país, produzindo 20% do PIB (com 8,6% da população). A renda per capita na cidade é quatro vezes maior do que a média nacional. Há alguns anos a taxa anual de crescimento da economia vietnamita é de 7%.

O país é o maior exportador mundial de café solúvel e o terceiro de arroz. Mas o Vietnã, comunista em sua estrutura política e economicamente capitalista, também tem uma das maiores desigualdades do mundo.

Na capital, Hanói, no norte do país, a realidade é outra. Na periferia da cidade, a pobreza endêmica pode ser vista, revelando o fato de o país ser um dos mais pobres da Ásia.