Título: COMEÇO DE REAÇÃO?
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 05/05/2005, O País, p. 4

Ao contrário do que se imaginava, a decisão da Mesa Diretora da Câmara de arquivar o pedido de investigação contra o presidente do PP, deputado Pedro Corrêa, em vez de abrir caminho para a absolvição do deputado André Luiz, ajudou a condená-lo. A reação da opinião pública contra as medidas corporativas que estão sendo tomadas pela Câmara na gestão do deputado Severino Cavalcanti reflete o aumento da rejeição aos políticos de modo geral, e somente uma atitude radical como a que foi tomada ontem ¿ uma votação maciça a favor da cassação de um colega por quebra do decoro parlamentar ¿ seria resposta adequada.

Uma maneira que a maioria da Câmara encontrou para tentar reequilibrar suas relações com a população. Houve vários momentos simbólicos na tarde de ontem: nenhum deputado, exceto o próprio, teve coragem de subir à tribuna para defendê-lo, e nenhum deputado se apresentou para acompanhar a apuração dos votos em nome do deputado André Luiz, a ponto de o presidente da sessão naquele momento, deputado Inocêncio de Oliveira, ter permitido que o advogado do acusado subisse à Mesa para acompanhar.

E, já sabendo que o resultado seria emblemático pela cassação do deputado André Luiz, o presidente Severino Cavalcanti assumiu a presidência da sessão para anunciar o resultado, como se com isso limpasse um pouco sua imagem.

Um ponto de atenção surgiu do resultado final da votação: se somarmos os votos contra a cassação, as abstenções, votos em branco e a ausência pura e simples de deputados em votação tão importante, teremos mais de 30% dos deputados de alguma maneira coniventes com o acusado de chantagem. Por isso, enganam-se os deputados e senadores se considerarem que medidas pontuais como a de ontem servirão para apaziguar a opinião pública.

Existe um longo trabalho a ser feito para que o Congresso volte a ser considerado um órgão confiável pelos eleitores. A eleição do deputado Severino Cavalcanti para presidência refletiu uma tendência que, se não era majoritária dentro da Câmara, faltava pouco para ser. Tanto que quando num equívoco pelo qual terão que responder, os líderes da oposição decidiram se juntar ao "baixo clero" para derrotar o candidato do governo, deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, transformaram o corporativismo exótico de Severino Cavalcanti na imagem política do Congresso, com todas as conseqüências daí advindas.

Esse foi um grande equívoco político da oposição, que pensava que, além de infligir uma derrota ao governo, poderia controlar o presidente da Câmara. A realidade está mostrando que Severino e seu grupo não têm qualquer projeto de poder a não ser usufruí-lo, e isso pode ocasionar perigosos "curtos-circuitos" nas relações políticas, que já estão ocorrendo.

O próprio presidente Lula já perguntou mais de uma vez quem poderia controlar o Severino, e não encontrou quem se dispusesse a tentar. O "baixo clero", que sempre foi excluído das grandes decisões da Câmara, passou a ditar a pauta e o ritmo dos trabalhos, ao mesmo tempo em que a tendência centralizadora do Executivo ajudava a paralisar o funcionamento do Congresso com a edição desenfreada de medidas provisórias. Ontem, eram sete medidas provisórias trancando a pauta da Câmara.

Essa situação tornou-se freqüente desde que entrou em vigor, em 2001, a Emenda Constitucional 32 que prevê que medidas provisórias não apreciadas até 45 dias após a edição passam a obstruir as votações na Casa legislativa onde tramitam. Como têm sido editadas em torno de seis medidas provisórias por mês, na prática a regra acaba restringindo o exame de outras propostas, sobretudo daquelas de iniciativa dos próprios parlamentares.

Os decretos-leis, instrumentos legais do tempo da ditadura que recentemente o presidente da Câmara comparou às medidas provisórias, porque passavam a vigorar independentemente da aprovação do Congresso, também foram amplamente utilizados, sendo que a Junta Militar que governou o país com a morte de Costa e Silva chegou a editar mensalmente mais de cem.

Essa é uma tendência mundial mesmo nas democracias, diga-se de passagem, a de o Executivo se sobrepor ao Legislativo e tentar comandar o processo político. A média de processos de origem do Legislativo no mundo está em torno de 5%, agravado no Brasil pelos problemas colaterais de corporativismo que servem para degradar a imagem do Legislativo. Para se contrapor ao Executivo nessa disputa de poderes, o Legislativo teria que ter legitimidade para se impor. Ontem mesmo, para colocar em votação o pedido de cassação do deputado André Luiz, foi preciso que a Mesa Diretora da Câmara fizesse uma interpretação casuística da emenda constitucional que trata das medidas provisórias.

Decidiu-se que somente o que fica trancada é a tramitação legislativa, e não representações como a do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar. A falta de produtividade da Câmara chega a incomodar até mesmo Severino Cavalcanti, que culpa o governo pela imagem de ineficiência que pesa sobre a Câmara.

Este está sendo considerado um dos piores Congressos em termos de produtividade e de qualidade, o que, junto com os sucessivos escândalos, onde se destacam a auto-concessão de aumento das verbas de representação e o nepotismo, vai fortalecendo a percepção na opinião pública de que se gasta cada vez mais com deputados e senadores e tem-se de retorno pouco trabalho. Se não tivesse dado uma resposta tão decisiva quanto a de ontem, o Congresso estaria se auto-negando, se auto-cassando.