Título: SEM ARMAS
Autor: RUBEM CÉSAR FERNANDES
Fonte: O Globo, 05/05/2005, Opinião, p. 7

Pesquisa feita pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), bem aceita tecnicamente pelo alto comando do Exército, chegou à estimativa de 17,3 milhões de armas pequenas em circulação no Brasil. No estado (Forças Armadas, polícias e outros), seriam cerca de 1,7 milhão. 90% delas, portanto, estariam em mãos privadas. Dos 15,6 milhões que circulam na sociedade, algo como 6,8 milhões seriam legais, 4,7 milhões ¿informais¿ (à margem da lei, porém possuídas sem intenção criminal) e 4 milhões estariam a serviço do crime.

A campanha de entrega voluntária de armas colocou a meta de 500 mil armas recolhidas até 23 de junho. Considerando que a campanha visa ao segmento não criminal, composto das armas legais e informais, atingir a meta implica redução de 4% do universo em questão. Recolher meio milhão de armas é um feito de repercussão mundial. Não se diga, contudo, que, com ele, o Brasil se desarmou. É um começo. Belo e impressionante, pela decisão de cada pessoa que, num ambiente eivado de violências, teve a coragem de desarmar-se. Eficiente, sem dúvida, pois reduziu as chances de tragédias impensadas, mas é apenas um primeiro passo.

Desarmar é controlar a violência armada. Submetê-la aos limites da lei e do razoável. É tarefa maior. Exige, em resumo, ações radicais que reduzam, a um tempo, a oferta, os estoques e a demanda pelas armas e munição.

Reduzir a oferta é limitar a entrada de novas armas e munição no mercado, seja pela venda a civis, seja pelo contrabando. Lembre-se que entre 70% e 80% das armas apreendidas no crime são de fabricação nacional. O percentual para a munição é ainda maior. Estancar a oferta doméstica é, portanto, fundamental. Para isto temos data marcada, com o Referendo sobre a proibição do comércio de armas no Brasil. Cada brasileiro deverá pensar a respeito e tomar uma decisão. Vencendo esta, teremos ainda o contrabando. É preciso que o governo Lula dê o exemplo, antes mesmo do Referendo, com ações eficazes em relação aos países vizinhos que se prestam à venda fácil. Temos autoridade e poder para isto. Estamos fazendo nossa parte. É preciso que os vizinhos façam a sua, sobretudo no Mercosul e associados.

Reduzir os estoques é mais complexo. Exige informação qualificada, de todas as instituições relevantes e de todos os estados. Precisamos investir pesadamente no Sistema Nacional de Armas (o que, segundo declarações oficiais, deve acontecer este ano) e também nas polícias estaduais, para que se comuniquem em tempo real. Precisamos modernizar os controles dos paióis das Forças Armadas, das polícias e das seguranças privadas, para que não haja tantos desvios.

O setor privado varejista controla os estoques dos produtos que vendem a granel. Espera-se que os estoques de armas e munição alcancem a mesma eficácia. A tecnologia está disponível. Resta aplicá-la. Para os estoques circulantes na sociedade, contamos com as polícias, para reduzir o segmento criminal, e deveríamos tornar permanente a campanha de entrega voluntária de armas. A cada nível, por fim, seguir destruindo os excedentes.

Reduzir a demanda é o mais difícil. Sofremos hoje uma demanda abusiva, desordenada e irracional pelos bandidos, que são os principais usuários. Atiram por qualquer coisa e até mesmo por nada. As polícias sofrem as conseqüências e acabam, com freqüência, respondendo na mesma medida. O medo reforça em muitos a vontade de se armar, para autodefesa. Dependemos de uma política de segurança que tenha como norte a inibição radical do uso da arma de fogo. Não é fácil fazê-la, mas já foi feita em outras regiões. Haveremos de conseguir aqui também.

Começamos o desarmamento no Brasil, mas é bom que se diga: a ansiedade que nos persegue não terá satisfação imediata. Esta briga, que é das melhores, está apenas em seu início. É jornada profunda, na medida do problema acumulado. Pede fôlego, persistência no rumo e a convergência dos esforços.

RUBEM CÉSAR FERNANDES é antropólogo e diretor-executivo da ONG Viva Rio.