Título: ENCARNAÇÃO DE VELHOS CONFLITOS
Autor:
Fonte: O Globo, 05/05/2005, O Mundo, p. 39

Nas últimas semanas, não apenas o Iraque tem sido desestabilizado por múltiplos atentados suicidas no mesmo dia, mas Egito e Arábia Saudita também testemunharam ataques de fanáticos jihadistas. Como se conseguem tantas pessoas para cometer suicídio por uma causa? O que está acontecendo?

Em parte, o mundo árabe-muçulmano está colhendo o que plantou. Demasiados intelectuais, religiosos e líderes políticos árabes estavam prontos para enaltecer atentados suicidas quando eram contra israelenses. Agora, estão vendo como esta arma do niilismo ¿ uma vez santificada e glorificada ¿ pode ser usada contra suas próprias sociedades. Era errado usar contra judeus, e o é contra muçulmanos. Não se pode construir uma sociedade decente sobre túmulos de homens-bombas e de suas vítimas.

Mas esses atentados também são sinais de um conflito mais profundo, ativado pela tentativa americana de erguer uma democracia no Iraque. Meu amigo Raymond Stock, biógrafo e tradutor de Naguib Mahfouz, argumenta que estamos vendo em Bagdá, Cairo e Riad a encarnação moderna de várias guerras com profundas raízes e interrelacionadas. São, segundo ele, a guerra dentro do Islã entre tradicionalistas e racionalistas, que remonta à Bagdá do século IX; a luta entre sunitas e xiitas, que remonta à sucessão de batalhas no início do Islã; e o confronto entre o Islã e o Ocidente, que remonta às conquistas árabes do século VII e às Cruzadas. Na encarnação moderna de cada um desses conflitos, a minoria sunita-tradicionalista-jihadista está perdendo. E quanto mais isto ficar evidente, mais violenta esta minoria vai se tornar.

¿ A eleição iraquiana foi um choque total para as forças jihadistas militantes no mundo árabe-muçulmano ¿ observa Stock. ¿ Elas advertiram iraquianos: ¿vocês votam, vocês morrem¿. E milhões de iraquianos responderam: ¿nós votamos, nós decidimos¿. E o que estão decidindo não é ser pró-americanos, nem pró-ocidentais, mas tentar construir sua própria sociedade árabe de um modo aberto ao modernismo e a interpretações do Islã que incentivem a inovação, a adaptação e o progresso. As forças jihadistas odeiam esta noção. Vêem o conflito por democracia no Iraque como um anátema de tudo o que defendem: uma interpretação literal do Islã, livre de modernidade, adaptação e pluralismo político e religioso. Perdendo a briga com sua própria comunidade, parecem ter ficado totalmente atordoadas.

Sim, este é um grande e profundo conflito no Iraque. Sim, as forças da decência e do pluralismo estão lentamente vencendo. Mas não acabou. O Exército dos EUA e o primeiro governo iraquiano eleito ainda não controlam o terreno. Se não pudermos ajudar os iraquianos a criar um ambiente seguro em seu país, o Iraque não terá uma democracia auto-sustentável. Os maus não vencerão, mas os bons também não, e todos nós teremos produzido um impasse sangrento.

THOMAS FRIEDMAN é colunista do New York Times