Título: MEIAS MENTIRAS, MEIAS VERDADES
Autor: Mauro Marcelo de Lima e Silva
Fonte: O Globo, 06/05/2005, Opinião, p. 7

A abertura dos arquivos do período de exceção demonstra maturidade democrática de uma nação. Precisamos passar a limpo essa história do país. Existem, é claro, limitações materiais, pois os arquivos estão microfilmados e a sua digitalização e análise não será possível antes de pelo menos um ano.

Nesses arquivos constam verdades e mentiras, além das piores informações, que são as mentiras mescladas com fatos verdadeiros, para dar maior credibilidade à informação.

Trata-se também de um universo de documentos polvilhados de jargões como "consta que", "dizem que" e "sabe-se que" , a rechear os informes e relatórios com pseudo-credibilidade, no intuito de transformar falácias em verdades cristalinas, cabais.

Tais relatos indicam que o prazer orgástico daquele período seria buscar, dentro da intimidade das pessoas, fatos que, se tornados públicos, seriam constrangedores, tais como homossexualismo, relações extra-conjugais, uso de drogas etc. Esses dispositivos descritivos eram vastamente repletos de vilanias, cuja finalidade era calar os perseguidos. E se isso deu "resultados", somente os próprios é que podem avaliar.

O grande dilema do governo, hoje, é definir como, quando e para quem essas informações serão liberadas. Mesmo sabendo que as informações são carregadas de verdades, mentiras e meias-mentiras, elas podem, muito tempo depois, criar embaraços, constrangimentos e gerar crises.

As leis de acesso à informação pública começaram em 1766 na Suécia, e constaram da Constituição daquele país em 1949. Nos EUA, surge em 1966 o Freedom of Information Act, ou Foia, cuja rota foi aperfeiçoada em 1974, pela Lei da Privacidade, que não somente balizava o que poderia ser tornado público, como também facultava aos cidadãos americanos que pleiteassem correções de informações errôneas e equivocadas que sobre eles constassem dos arquivos do Estado. Esse conjunto de vindicações de dados, em todo mundo, mostra que é correto o ethos pelo qual a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ora se pauta: a liberação deve ser facultada pela ética, prudência e legalidade, princípios básicos que faltaram àqueles que produziram esse amontoado de bobagens.

Muito dinheiro e tempo foram gastos, inutilmente, para erigir extratos de supostas circunstâncias, redigidos com a pena da inverdade e as tintas da má-fé. E nisso tudo repousa a prudência que ora deve ser adotada.

Seria ingenuidade, portanto, acreditar que aqueles que produziram tanta bobagem deixariam pistas de autoria dessas infâmias. Não deixaram. Temos apenas registros de um período que passou e que não queremos de volta.

Diante dessa mistura de mentiras, meias-verdades e meias-mentiras com fatos reais fica muito difícil saber o que é falso e o que é verdadeiro. No período de exceção, a defesa da mentira como verdade tentava nos confundir. Utilizava para isso a desinformação - que é um mix, um melánge de fatos verdadeiros com e falsos, objetivando um resultado predeterminado, artifício conhecido na filosofia como telenomia.

Concretamente, a divulgação do conteúdo de documentos sigilosos está sendo reavaliada no âmbito do Executivo e do Legislativo. De forma mais efetiva, o governo tomou a iniciativa de modificar marcos legais existentes, editando a Medida Provisória nº 228/2004 e o decreto nº 5.301/2004. Tudo isso justamente com o objetivo de atender aos legítimos anseios democráticos, fazendo-o sem comprometer ou pôr em risco os interesses do Estado.

Certamente, a Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas terá todas as condições para decidir sobre as ressalvas, ou seja, as informações que devem ser preservadas sob regras de sigilo. Isso para que não se coloque, inadvertida e obliquamente, o Estado brasileiro numa situação de fragilidade, seja no contexto da estabilidade interna ou da cena internacional.

A bússola a guiar a abertura dos arquivos deve indicar com precisão as latitudes éticas dos direitos particulares e, com pertinácia, os limites geopolíticos do Estado. E é esse rumo que guia toda a preocupação da Abin.

MAURO MARCELO DE LIMA E SILVA é diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Não há pistasde autoriadas infâmias arquivadaspela ditadura