Título: BUSH ENTRE OS DOIS LADOS DA RENDIÇÃO
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 07/05/2005, O Mundo, p. 43

Nunca, em seus cinco anos de governo, o presidente George W. Bush enfrentou um desafio diplomático tão complexo e arriscado quanto sua atual viagem ao Leste da Europa, iniciada ontem. A missão, traçada pelos estrategistas da Casa Branca, é ao mesmo tempo ambiciosa e contraditória.

Por um lado, ele irá a Moscou para celebrar os 60 anos do fim da Segunda Guerra Mundial ¿ que na Rússia é chamada de Grande Guerra Patriótica ¿ e que custou a vida de nada menos do que 27 milhões de russos. Ele estará segunda-feira ao lado do presidente Vladimir Putin, num palanque na Praça Vermelha, em frente ao túmulo de Lenin, comemorando uma vitória que, ironicamente, resultou no aumento do autoritarismo: a ocupação de várias nações pela União Soviética e a imposição do comunismo.

Por outro lado, Bush também visitará a Geórgia e a Letônia, e neste segundo país vai se encontrar ainda com os líderes de outros dois, a Estônia e a Lituânia, vítimas daquela ditadura e que hoje tentam resistir à influência do Kremlin. Os presidentes dessas duas nações, e também o da Geórgia, recusaram, em protesto, o convite de Putin para ir às festividades em Moscou.

Preocupado em manter um diálogo aberto com Putin, um essencial aliado estratégico, o presidente americano vai lhe dizer que não está tentando restringir a influência regional de Moscou. E tampouco condenará publicamente o fato de ele ter imposto limites à imprensa e estar tentando, sob ares ditatoriais, mudar a lei para poder ser eleito pela terceira vez. Mas, ao mesmo tempo, Bush incentivará os ex-satélites soviéticos a se inclinarem mais para o Ocidente, sugerindo os EUA como o modelo a seguir ¿ anteciparam assessores do presidente americano.

Fiona Hill, acadêmica da Brookings Institution, em Washington, está ansiosa pelo resultado dessa iniciativa:

¿ Esse é um teste enorme que exige uma diplomacia bastante sofisticada. Eu vou tirar o chapéu para o governo se ele conseguir se sair bem nessa empreitada ¿ disse ela.

Stephen Hadley, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, comentou que não há outra saída:

¿ O mundo lá fora é complicado, manhoso. Há muitos desafios a serem enfrentados ¿ disse ele.

O clima já estava rarefeito às vésperas do embarque de Bush, ontem de manhã. O ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, enviou uma carta à secretária de Estado, Condoleezza Rice, protestando contra Bush ir pregar democracia na Letônia e na Geórgia, antes de chegar a Moscou. Ela respondeu de imediato: disse a ele que Bush visita quem ele quiser.

Estratégia: não olhar para o passado

Numa entrevista à agência russa de notícias Interfax, Vyacheslav Nikonov, analista da Politika Foundation, insinuou que o presidente americano não seria bem-vindo à Rússia depois de visitar os dois países:

¿ Isso é como um tapa na cara da Rússia. Seria como Putin, antes de ir a Washington, parar em Havana e na Coréia do Norte ¿ disse.

Por trás da polêmica está uma declaração de Putin, ao dirigir-se à Rússia no último dia 25, em rede de rádio e televisão. Ele disse que a desintegração da União Soviética foi ¿a maior catástrofe geopolítica do século XX¿. Ontem, sintomaticamente, deu uma guinada em sentido contrário, numa entrevista a estações de TV da Alemanha: disse que a ocupação dos países bálticos ¿ Letônia, Estônia, Lituânia ¿ foi mais do que um equívoco:

¿ De fato, os países bálticos foram uma moeda de troca na grande política mundial, e é claro que a ocupação foi uma tragédia para aquelas nações. É preciso dizer isso claramente ¿ disse ele, referindo-se ao acordo entre Josef Stalin e Adolf Hitler.

Putin, no entanto, disse que durante as festividades de segunda-feira, e também no jantar privado que terá com Bush numa dacha (casa de campo), no domingo, não vai pedir desculpas pelas ocupações. Isso, lembrou ele, já foi feito em 1989, por Mikhail Gorbachov, quando o Kremlin admitiu e condenou os erros do passado:

¿ Isso que estão dizendo agora, de que nosso país tem de admitir a ilegalidade daquelas decisões e condená-las não tem cabimento. Já fizemos isso. Será que vamos ter de pedir desculpas todos os dias, todos os anos? Isso simplesmente não faz sentido ¿ disse Putin, referindo-se a uma exigência dos países bálticos.

Consciente de estar pisando em ovos, Bush evitará referir-se ao passado, ainda que o aniversário do fim da Segunda Guerra seja uma oportunidade propícia a isso. A idéia, segundo adiantou Hadley, é olhar para a frente, concentrando-se nos temas que unem os EUA e a Rússia, e não nas diferenças que poderiam afastar um do outro.

Trata-se de uma iniciativa semelhante à que os EUA têm cultivado em relação à América Latina: procurar instigar a consolidação da democracia na região, sem mencionar que as ditaduras do passado foram apoiadas ¿ quando não instaladas ¿ pelo governo americano.

¿ Ao mesmo tempo em que reconhecemos o passado, devemos falar sobre formas de seguir adiante e avançar nos princípios democráticos não apenas na Europa, mas além dela ¿ disse Hadley.