Título: O DILEMA DO PT
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 07/05/2005, O País, p. 4

Vinte e três anos depois de fundado, o PT chegou ao poder central do país com seu maior ícone, o líder operário Lula, sendo eleito presidente da República depois de três derrotas consecutivas, duas delas para seu maior rival na política, o PSDB. Completado pouco mais da metade do primeiro mandato, Lula está com a popularidade em alta, a economia está em crescimento, e há chances reais de ele continuar no poder em 2006.

O PT, no entanto, se debate em uma crise de identidade permanente, que por sua vez gera crises políticas sucessivas, expondo as fragilidades do governo e abrindo caminho para questionamentos sobre a capacidade do PT e de Lula de governarem o país.

Na esteira da novidade que é o PT no governo, dois recentes trabalhos acadêmicos, coincidentemente de jornalistas que defenderam teses no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio e Janeiro ( Iuperj), tentam explicar a trajetória petista até o poder, e as razões de sua atuação ambígua e permanentemente conflituosa.

O cientista político Jairo Nicolau, pesquisador do Iuperj, diz que o PT ¿é um partido fascinante. Nenhum partido foi tão pesquisado, esmiuçado, analisado quanto ele, nem o velho PCB¿. Uma das teses, de Paulo Roberto Figueira Leal, transformou-se em um livro ¿¿O PT e o dilema da representação política: os deputados federais são representantes de quem?¿ ¿ e Jairo Nicolau a considera ¿o melhor estudo sobre a bancada do PT na Câmara. E certamente um dos trabalhos mais originais sobre o partido¿. Paulo Roberto fez uma pesquisa com a bancada federal do PT para entender como os deputados trabalham e a quem representam.

A outra tese de mestrado em ciência política, de Rodrigo de Almeida Ribeiro, tem o título ¿Ao Brasil sem medo, a idéia petista de nação feliz¿, e procura explicar a integração entre o jogo político e a felicidade na campanha que levou Lula à Presidência sob o slogan ¿sem medo de ser feliz¿. Os capítulos que analisam a construção do partido, e o caminho até as alianças políticas pragmáticas da campanha de 2002, são especialmente úteis para se tentar entender o que se passa com o PT no poder.

Segundo Paulo Roberto Leal, os valores a partir dos quais o PT se organizou são a defesa do consenso, com a participação ativa das minorias nos processos decisórios, a idéia de que a representação deve ter relação direta com as bases, e de que os mandatos devem ser exercidos de maneira imperativa, não virtual.

Ele lembra, porém, que várias mudanças estatutárias aconteceram desde 1980, e há indícios de que alterações mais profundas surgirão no futuro, a partir do que ele chama de ¿desafios inaugurados com o governo Lula¿: desejo da direção partidária e dos ocupantes de cargos de poder de terem maior autonomia decisória; crescimento institucional do partido, com a conseqüente profissionalização, e fortalecimento dos mandatos parlamentares.

Segundo ele, as mudanças já podem ser percebidas na prática política cotidiana, ¿cada vez mais orientada pela disputa no mercado eleitoral, com a ampliação do arco das alianças e o pragmatismo na condução das campanhas eleitorais¿. Seu estudo mostra que a atuação legislativa dos deputados petistas é significativamente influenciada pelas decisões partidárias coletivas.

Diante das limitações impostas por normas, práticas, ideologia e a história do PT, a maioria dos deputados transforma seu gabinete em máquina eleitoral de atendimento às organizações sociais a cujas bases eleitorais estão ligados. Mais de 60% dos deputados recrutam seus funcionários por indicação dos movimentos sociais, e em alguns gabinetes, a totalidade dos funcionários é oriunda desses movimentos.

A posição hegemônica no partido é de que o mandato pertence ao PT, é favorável à fidelidade partidária e ao fechamento de questão. A influência do partido nas eleições é menor, na percepção dos deputados, que consideram que no processo eleitoral eles têm um papel tão importante quanto o da legenda. Todas essas especificidades petistas levam, segundo Paulo Roberto, a ¿um adensamento das tensões entre segmentos do partido, como deputados federais que têm vínculos de representação com movimentos sociais, e o governo, que implementa um programa por vezes contrário às propostas destes movimentos¿.

Paulo Roberto acha que ¿o risco de rupturas significativas é maior hoje do que foi em qualquer momento anterior da história do PT. Se acontecerá ou não dependerá dos pactos internos que se estabelecerem¿. Ele ressalta que ¿obrigar um deputado a votar contra os interesses de suas bases, como tem ocorrido com muitos parlamentares do PT, implica gerar tensões. Se estas tensões forem sistemáticas e estruturais, como parece ser o caso das divergências sobre os rumos da política econômica, o problema é maior e mais complexo¿.

Essas tensões não se limitam, ele lembra, à esquerda do PT. Também setores normalmente próximos ao Campo Majoritário, grupo ligado a Lula e José Dirceu que domina o partido, enfrentam estes dilemas: o lançamento da candidatura da deputada Maria do Rosário à presidência do PT pela tendência Movimento PT, que não está na esquerda partidária, é um sinal dessas tensões.

Para o deputado Chico Alencar, da esquerda do PT, ¿o governo Lula reaglutinou a direita e dispersou a esquerda¿. A prova seria a esquerda petista ter três candidatos à sucessão de José Genoino. Essas candidaturas representam a lógica das tendências prevalecendo, inclusive para unificá-las, porque elas têm enormes dissensões internas.

Um candidato é Raul Pont, da Democracia Socialista, de tendência trotkista; outro é Walter Pomar, da Articulação de Esquerda, facção comunista-leninista; e outro é Plínio de Arruda Sampaio, fundador do partido, lançado por um grupo independente e pela esquerda católica. (Continua amanhã)