Título: A DIFÍCIL SAÍDA DOS HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS
Autor: Alessandro Soler
Fonte: O Globo, 08/05/2005, Rio, p. 24

Prevista em lei, extinção dos leitos para doentes mentais segue em marcha lenta, enquanto gastos continuam altos

Enquanto o país comemora o centenário de nascimento da psiquiatra Nise da Silveira, pioneira na ressocialização de doentes mentais pela arte ¿ e cuja obra ajudou a catalisar correntes defensoras da desospitalização ¿ a extinção dos leitos psiquiátricos, prevista em lei há quatros anos, é lenta no Rio. E os gastos com internações continuam altos: segundo a Secretaria municipal de Saúde, foram de R$26,5 milhões em 2003 (dado mais recente) ou cerca de 14% do custo de todos os leitos contratados pelo SUS na cidade.

A distorção é grande. Para a Organização Mundial de Saúde, só 3% da população inspiram cuidados psiquiátricos intensivos. Mas no Estado do Rio cerca de 25% de todos os leitos contratados pelo SUS na rede privada, segundo a série histórica, são psiquiátricos. Só no ano passado, de acordo com a Fundação Centro de Informações e Dados do Rio (Cide), o SUS pagou por 9.028 leitos dessa especialidade, um quarto dos 37.087 leitos de todas as áreas médicas juntas. Em 2003, foram 10.296 e 44.773, respectivamente.

Denúncias de maus-tratos e de falta de remédios

O gestor municipal das verbas do SUS na área psiquiátrica admite que os números são absurdos, a taxa de desospitalização é lenta e a contratação de tantos leitos na rede privada é daninha. Hugo Fagundes, também coordenador do Programa de Saúde Mental do município, diz ser mais difícil ter controle sobre o que se faz atrás dos muros das clínicas particulares.

Dados do Disque-Denúncia e do Disque-Saúde do vereador Dr. Carlos Eduardo, vice-presidente da Comissão de Saúde da Câmara, ilustram o que ele diz: há muitas queixas de maus-tratos, privação de alimentos e falta de remédios.

¿ Com a criação da Central de Regulação, passamos a controlar as internações e a privilegiar nossos leitos próprios. Mas o processo é difícil. Há 2.700 vagas psiquiátricas no Rio, duas mil de residentes. Os donos das clínicas batalham para não perder os repasses do SUS. Enquanto isso, nossas equipes relatam maus-tratos, alimentação inadequada. Já descredenciamos quatro hospitais ¿ diz Fagundes.

Administrador de um dos mais tradicionais hospitais psiquiátricos do Rio, o Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, que é federal e foi municipalizado, Edmar Oliveira faz eco sobre a urgência da extinção de leitos privados. No elefante branco que administra, projetado num tempo em que se considerava bom o tratamento que trancafiava o paciente, ele criou residências quase ideais, com espaço e privacidade. Porém ainda há gente vivendo nas enfermarias, onde os quartos escuros e sem ventilação lembram baias de um estábulo.

¿ Mesmo assim é melhor para o paciente agudo estar aqui do que numa clínica que pode ter um tratamento horrível ¿ diz Oliveira. ¿ Em muitas há choques elétricos indiscriminados e castigos físicos.

Más condições, de fato, não são exclusividade da rede privada. Na Colônia Juliano Moreira, em Curicica, outra unidade federal municipalizada, parte dos 690 internos ainda convive com um quadro degradante. Numa blitz realizada lá, quinta-feira, no Hospital Jurandir Manfredini, a Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores constatou falta de medicamentos e pessoal e encontrou um quadro desanimador.

¿ Do total de pacientes, só 54 moram em residências terapêuticas fora dali, com acompanhamento de cuidadores e médicos. O resto se acumula em prédios dentro da colônia, uns melhores outros ruins. No Manfredini há fezes no chão, os pacientes andam descalços e relataram abusos físicos. Além disso, faltam remédios e a comida é pouca e ruim ¿ conta o vereador Dr. Carlos Eduardo.

Rio tem apenas 13 Centros de Apoio Psicossocial

A criação de uma rede extra-hospitalar composta por Centros de Apoio Psicossocial (CAPS) e residências terapêuticas coletivas para pacientes oriundos de longas internações hospitalares ¿ prevista na lei 10.216, de 6-2-2001, e na portaria do Ministério da Saúde 336/GM, de 19-2-2002 ¿ caminha lentamente. A proliferação dos CAPS, defendem os psiquiatras, ajudaria a diminuir o número de internações. Nesses centros são desenvolvidas atividades artísticas e esportivas e são fornecidos remédios. No Rio há apenas 13 deles e 16 residências terapêuticas que abrigam 85 pessoas.

¿ Propus na Câmara uma lei que crie um CAPS em cada área de planejamento da prefeitura ¿ diz o vereador. ¿ Como desospitalizar se não damos condições para isso?