Título: Drama civil no fim do nazismo
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 08/05/2005, O Mundo, p. 41

Vingança soviética tornou queda de Berlim um dos eventos mais violentos da Segunda Guerra

Em fevereiro de 1943, os escombros da cidade russa de Stalingrado ainda fumegavam após a mais sangrenta batalha da Segunda Guerra Mundial. Um grupo de prisioneiros alemães foi parado por um coronel soviético ainda transtornado: "É assim que Berlim vai ficar!", gritou, apontando para as ruínas. Dois anos depois, a vingança soviética chegava às portas da capital do Terceiro Reich. O regime de Adolf Hitler estava à beira do colapso e a população alemã, entregue à fúria dos soviéticos.

Há 60 anos, em 8 de maio de 1945, Berlim capitulava. Era o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa. Uma data que, diferentemente das comemorações conjuntas dos 60 anos do Dia D no ano passado, não será festejada pelos netos das pessoas que estavam na capital alemã há seis décadas. A Batalha de Berlim foi um dos momentos mais violentos da guerra, principalmente para as mulheres. Hitler era esmagado por americanos e britânicos pelo oeste e pelos soviéticos pelo leste desde o início de 1945. Chegara a hora de a população alemã sentir a violência da qual fora poupada até então.

A invasão soviética começou na Prússia Oriental. O fim do Reich era o início de um pesadelo civil. A ferocidade dos combates era avassaladora. Quatro anos antes, os generais nazistas receberam ordens de não fazer prisioneiros na Rússia. Centenas de milhares de soldados russos foram massacrados, ao lado de um número ainda maior de civis. Muitos foram enviados para a Alemanha como escravos.

A raiva natural do soldado russo era alimentada pela doutrinação oficial. Se a propaganda nazista liderada por Goebbels desumanizava os eslavos, tornando-os aos olhos alemães uma sub-raça, a resposta soviética foi afirmar que cada alemão era uma ave de rapina. "Soldado, lembre-se de que você está entrando no covil da besta fascista!", diziam cartazes colocados no caminho das tropas russas que iniciaram a invasão da Prússia Oriental em 13 de janeiro de 1945.

Soldados alemães eram fuzilados, mas o tratamento reservado aos civis era pior. Meninos e idosos foram trucidados, enquanto mulheres sofreram uma campanha de estupros. Soldados violavam jovens e idosas, sempre em grupo. Em Königsberg, os pais de uma mulher tiveram que pedir aos soldados que sua filha - estuprada durante horas - pudesse amamentar o neto, que chorava de fome.

Mas o objetivo de Stalin era Berlim. Ele sabia que quem controlasse a cidade controlaria o país. Para acelerar a invasão, promoveu uma disputa interna entre o comandante da 1ª Frente Bielorrussa, Jukov, e o da 1ª Frente Ucraniana, Konev. A corrida para Berlim provocou milhares de mortes, com avanços militares com muitas baixas por exposição ao inimigo ou ao fogo amigo.

Além da sede de vingança, o medo era um fator sempre presente entre os soldados e oficiais soviéticos. Agentes da NKVD (polícia política) estavam presentes em cada divisão e matavam não apenas desertores como pessoas com "desvios de conduta", termo que podia significar qualquer coisa que soasse contrária ao regime. Semana passada, Alexander Yakovlev, ex-integrante do Politburo, disse que um milhão de soldados soviéticos foram mortos desta forma na guerra.

Massacres de soldados e civis também ocorriam entre os alemães. As SS proibiram que qualquer pessoa se rendesse e milhares de berlinenses foram enforcados em postes.

A aproximação dos russos fez os civis começarem a fugir da cidade. Em 14 de abril, um trem abarrotado deixava Berlim, com pessoas espremidas em grande alvoroço. Um soldado, com duas cruzes de ferro (medalhas por bravura) no uniforme, gritou para conter a histeria. Suas palavras provocaram um silêncio absoluto:

- Parem de se queixar. Temos de ganhar esta guerra. Se outros a ganharem e nos fizerem só uma fração do que fizemos nos territórios ocupados, em poucas semanas não sobrará um único alemão.

Logo a batalha era travada dentro de Berlim. E era cada vez mais cruel, pois o chefe das SS, Himmler, criou batalhões de crianças da Juventude Hitlerista para o combate urbano.

Enquanto a cidade era destruída, o comandante do 12º Exército alemão, Walther Wenck, avançou para o sul da cidade vindo do oeste. Seu objetivo não era lutar pela capital, pois sabia que a guerra estava perdida. Tentava salvar o que restava do 9º Exército, que estava cercado, e abrir uma espécie de corredor humanitário para que os civis pudessem fugir da vingança soviética e se entregar como prisioneiros aos aliados, no Rio Elba, 80 quilômetros a oeste. Dentro da cidade, combatentes e civis desesperados tentavam furar o cerco em movimento semelhante.

Quando Hitler se matou, na tarde de 30 de abril, três diferentes exércitos soviéticos já estavam a centenas de metros de seu bunker. Em 1º de maio, o chefe do Estado-Maior alemão, Hans Krebs, esteve no QG do general Tchuikov. Ironicamente, Krebs fora adido militar alemão em Moscou até 1941. Tchuikov, líder da defesa de Stalingrado.

Mas não foi assinado qualquer cessar-fogo, pois Stalin exigia uma capitulação incondicional. Para marcar posição, nova chuva de artilharia caiu sobre o que restava de Berlim. Em 2 de maio, dia em que foi fincada a bandeira da URSS no Reichstag, os combates diminuíram. O armistício só seria assinado em 7 de maio para entrar em vigor à meia-noite do dia 8, mas a notícia vazou e a comemoração começou horas antes.

As memórias da guerra não deixam os alemães. Seis décadas depois da Batalha de Berlim, nos montes Seelow, na floresta ao sul da cidade e em obras em Berlim, cerca de mil corpos são encontrados anualmente. Semana passada, foi enterrada mais uma vítima.

- Era uma menina, de cerca de 10 anos, que foi morta na batalha. Achamos um cordão junto ao corpo com o nome Noel - disse a reverenda Erdmute Labes, da paróquia de Halbe. - É tudo o que sabemos dela.

Dentro da loucura de guerra, com soldados cegos pelo ódio e pela propaganda, com o passar dos dias os combatentes conseguiram enxergar o lado humano dos inimigos. O general Maslov descreveu a cena de crianças procurando os pais em meio à cidade em chamas. "O que surpreendia era que choravam exatamente da mesma maneira que choram nossas crianças", escreveu ele. A guerra acabara.

Legenda da foto: UM SOLDADO RUSSO finca a bandeira da URSS sobre o Reichstag, o Parlamento alemão, em 2 de maio de 1945: derrota final do nazismo