Título: 'As mulheres alemãs eram o alvo mais fácil'
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 08/05/2005, O Mundo, p. 42

Para Antony Beevor, ódio, propaganda e brutalização do conflito motivaram atrocidades contra civis na Batalha de Berlim

As atrocidades nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, principalmente na Frente Oriental, explicitadas nos campos de extermínio da Polônia, são conhecidas há décadas. Mas uma faceta do maior conflito armado da História foi trazido à tona pelo historiador britânico Antony Beevor. Um dos especialistas que mais pesquisaram fontes soviéticas da guerra, ele revelou em seu livro "Berlim 1945: a queda", da editora Record, o drama civil do avanço das tropas russas, sedentas de vingança depois das atrocidades nazistas na URSS. Em entrevista ao GLOBO, Beevor alerta para a onda revisionista entre jovens alemães de hoje e analisa a violência desmedida de soldados soviéticos contra civis da Alemanha.

A palavra vingança é suficientemente abrangente para descrever o nível de violência da invasão soviética da Alemanha em 1945?

ANTONY BEEVOR: Não foi apenas vingança. Claro, vingança foi grande parte daquilo e integrou a propaganda soviética que induzia determinada forma de conduta dos soldados. Mas isso não foi, necessariamente, um elemento-chave, mas um elemento de fundo. A verdadeira explosão de violência, particularmente contra mulheres, começou na Prússia Oriental em janeiro de 1945. Contra idosas e meninas jovens, quase crianças. Mulheres foram usadas como alvo não apenas de vingança de uma Rússia soviética irada. Foi também o efeito de soldados brutalizados pela guerra, que tinham sido humilhados, muitas vezes por seus próprios oficiais e comissários. E as mulheres alemãs eram o alvo mais fácil para descontar este ódio. Quando o Exército Vermelho chegou a Berlim se podia ver uma atitude diferente. Ali era basicamente oportunismo sexual. Eles invadiam os esconderijos para selecionar as jovens mais atraentes. Muitos depois mudaram para um outro estágio, que é muitas vezes descrito como prostituição de guerra, quando mulheres alemãs, para se protegerem, ofereciam-se para apenas um soldado russo como forma de não ser estuprada por outros ou de obter comida.

Por que estes ataques foram tão disseminados?

BEEVOR: Muito disso vem do fato de eles estarem sob o regime stalinista. O sexo era um assunto suprimido. Em publicações a silhueta de seios femininos não podia ser mostrada. A propaganda stalinista queria que todos sublimassem estes sentimentos de afeição, mesmo no sentido físico, num amor não apenas ao partido comunista mas ao camarada Stalin. Então esta forma de repressão sexual criou as condições para que eles fizessem o que queriam. Mais significativo era que os soldados russos tinham que se embebedar antes que fossem capazes de estuprar, o que mostra quão profunda essa repressão era.

E a violência contra soldados inimigos? À época, muitos disseram não ficar surpresos.

BEEVOR: Isso não foi surpreendente, pelo menos na frente oriental (da Alemanha com a URSS). Os dois lados matavam os prisioneiros de forma rotineira. Para o Exército Vermelho o problema era tentar evitar que muitos prisioneiros fossem mortos porque eles os queriam para interrogatórios. E perceberam que as tropas polonesas que se juntaram ao Exército Vermelho estavam entre as piores nas mortes de prisioneiros, porque tinham muito que se vingar da Alemanha.

Qual era o espírito do civil alemão em 1945? Ele ainda acreditava no Terceiro Reich, no nacional-socialismo, em Hitler?

BEEVOR: Havia uma parcela fiel que se sentia obrigada a acreditar nos nazistas. Mas a maioria começou a ver logo quão desastrosa para a Alemanha a política nazista era. Mesmo no momento da invasão da URSS, em 1941, muitos alemães temiam, instintivamente, aquela grande massa de terra no leste. Era um temor psicológico antigo deste grande deserto eslavo de onde hordas poderiam aparecer para atacá-los. E foi isso que Hitler provocou. Então, mesmo aqueles que tinham comemorado nas ruas em 1940, depois da vitória contra França, Holanda e Bélgica, quando a maioria dos alemães apoiou Hitler, nas semanas que se seguiram a Stalingrado (fevereiro de 1943), quando eles perceberam que tinham sido enganados por Goebbles e que seus exércitos, seus filhos e maridos estavam morrendo, o espírito, em grande medida, mudou contra o regime nazista. Mas havia ainda um elemento forte na liderança, no Exército e no Partido Nazista de que não haviam feito nada de errado.

Soviéticos e aliados sabiam dos campos de extermínio antes de eles serem encontrados pelos tropas. Eles poderiam ter feito algo antes do que fizeram?

BEEVOR: Este é um debate que ocorre há tempos. Quando os britânicos começaram a decodificar mensagens alemães, os soviéticos já tinham descoberto um ano antes o campo de Treblinka. Mas é interessante verificar as atitudes dos dois lados. No lado soviético, Stalin se recusou a permitir que os judeus tivessem identidade como vítimas, eram cidadãos soviéticos. Para ele, a Rússia soviética era a vítima da invasão nazista. No lado britânico, descobriram Auschwitz. Mas a prioridade britânica era terminar com a guerra. E atacar ferrovias, que é o que os judeus queriam, é uma forma pouco eficaz de bombardear. Ferrovias podem ser reconstruídas mais rapidamente do que praticamente qualquer outra coisa. Acharam que seria melhor, e do interesse de longo prazo das vítimas judaicas, concentrar os bombardeios para terminar com a guerra. Esta pode ter sido a decisão errada, provavelmente foi, mas era um argumento válido.

Ano passado houve uma comemoração nos 60 anos do Dia D, que incluiu a presença do chanceler alemão. Que tipo de reação podemos esperar dos alemães neste 8 de maio?

BEEVOR: O espírito na Alemanha tem sido contraditório. Há quem veja a vitória de 1945 como a libertação do nazismo. Mas não se pode negar que não se venha a se sentir mal com a destruição de seu país. E, assim, desde 2002 tem havido um novo espírito. Uma forma de dizer: "nós, alemães, fomos vítimas em 1945". E, sim, houve 11 milhões de alemães que sofreram limpeza étnica, foram expulsos do leste, da Prússia Oriental, da Silésia, da Polônia que tinham colonizado e dos sudetos. Se eles mereceram é outra questão. Mas o problema com os alemães, temo, é que tendem a ignorar a ligação entre causa e efeito. Muitas vezes se vêem como vítimas em 1945 sem aceitar totalmente as razões. E o outro problema é a questão dos bombardeios. Alguns historiadores alemães dizem que os bombardeios britânicos da Alemanha foram um crime de guerra. O fato de que a Luftwaffe começara o bombardeio de cidades é esquecido. Os bombardeios britânicos e americanos da Alemanha forçaram a Luftwaffe a retirar 80% de seus caças e suas baterias antiaéreas da Rússia para levá-las para a Alemanha para defender suas cidades. Isso ajudou muito o Exército Vermelho. Então, houve uma justificativa militar. Se houve uma justificativa moral é outro assunto. Certamente entendo e tenho simpatia com as reações dos jovens alemães que dizem: "Por que devemos pedir desculpas? Não estávamos vivos naquele tempo." É verdade. Mas devem reconhecer por que estas coisas aconteceram.

Legenda da foto: ANTONY BEEVOR: Alemães devem entender relação entre causa e efeito