Título: Saída à argentina
Autor: Maria Lima e Lydia Medeiros
Fonte: O Globo, 11/05/2005, O País, p. 3
Sem explicações, Kirchner abandona cúpula no meio e causa mal-estar entre os países
As difíceis e delicadas relações entre os governos brasileiro e argentino foram contaminadas por mais um incidente, protagonizado pelo presidente Néstor Kirchner, que inesperadamente abandonou no meio a Cúpula América do Sul-Países Árabes. O encontro termina hoje, mas ele retornou a Buenos Aires ontem à tarde, quando ainda estava previsto encontro com o presidente Lula. Pegos de surpresa, diplomatas e membros dos dois governos se mobilizaram para minimizar o impacto político do episódio.
Na véspera, Lula tivera jantar amistoso com Kirchner e o venezuelano Hugo Chávez, mas as coisas desandaram cedo, quando o presidente do Peru, Alejandro Toledo, ao falar na cúpula em nome dos países sul-americanos, ressaltou a importância de Lula como líder do Cone Sul e do mundo. Todos aplaudiram, menos o argentino, que, de cara fechada, chegou a se levantar para falar ao telefone. Durante a cerimônia de abertura da cúpula, o presidente argentino se mostrou impaciente e mal-humorado. Quando deixava o encontro, à tarde, Kirchner foi lacônico e não quis explicar sua decisão. Roberto Lavagna, ministro da Fazenda, estava igualmente irritado:
- Não há declaração a fazer! Não vou falar. Basta, basta, basta! - reagiu, quando perguntado sobre o motivo da volta antecipada de Kirchner: - Perguntem ao presidente!
Do lado brasileiro, o primeiro a comentar a partida de Kirchner foi o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, sem esconder a surpresa:
- Ele (Kirchner) deve ter seus motivos para ir embora. Não há nada neste sentido (ciúmes), o diálogo estes dias foi muito produtivo.
Dificuldades nas negociações tarifárias de produtos argentinos e brasileiros, dentro do Mercosul, e a indiferença do Brasil diante das negociações do governo argentino com o FMI também teriam servido de combustível para a debandada intempestiva.
Amorim: "Deixa o fumo se dissipar"
O mal-estar cresceu quando chegou à imprensa a informação de que Kirchner alegara que já havia conseguido seu objetivo na reunião. Segundo fontes dos dois governos, depois que conseguiu incluir no documento final a manifestação de solidariedade à Argentina por causa da classificação das Ilhas Malvinas como território britânico no mapa da União Européia, Kirchner perdeu o interesse pelo encontro.
Referência que provocou reação da embaixada do Reino Unido em Brasília. Em nota, a embaixada reafirma que referências às ilhas como território britânico já constam de tratados da União Européia desde 1973. A nota conclui: "A posição do Reino Unido em relação a sua soberania sobre as Ilhas Falkland é bem conhecida".
Na despedida, Kirchner limitou-se a dizer que as negociações foram muito bem e deu nota 9,5 à cúpula. O embaixador da Argentina no Brasil, Juan Pablo Lohlé, negou qualquer problema, afirmando que já estava previsto seu retorno para as18h.
- Não há nenhum problema. Essa é uma idéia dos jornalistas. Os dois presidentes conversaram ontem num churrasco que estava muito bom - disse Lohlé.
Para o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, o diálogo entre Kirchner e Lula é excelente e os problemas comerciais são normais entre países vizinhos:
- É muito fumo em torno de pouca coisa. Deixa o fumo se dissipar. Acho que já está dissipado, para falar a verdade. Temos problemas comerciais com a Argentina porque está mais próxima de nós. O mesmo se passa entre Canadá e Estados Unidos.
Lula comentou com assessores que a volta de Kirchner não poderia ser vista como mais um ingrediente de crise porque sua vinda, disse, foi muito proveitosa e positiva.
COLABORARAM Cristiane Jungblut e Eliane Oliveira
O ESTILO K SEMPRE CAUSA POLÊMICA
Fiel a seu estilo intempestivo, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, mais uma vez deixou claro ontem que não gosta de perder tempo em reuniões protocolares e, mesmo sabendo que suas decisões provocam profunda irritação entre representantes de governos vizinhos, prefere concentrar suas energias tentando resolver problemas internos.
Segundo fontes da delegação argentina, Kirchner considerou que o encontro com os presidentes Lula e Chávez, na noite de segunda-feira, foi suficiente para discutir problemas regionais e, sobretudo, bilaterais. Portanto, o que restava a fazer em Brasília era participar da cúpula presidencial e Kirchner, como ele já admitiu, considera este tipo de encontro perda de tempo.
A atitude do presidente não surpreendeu os argentinos, acostumados com o polêmico "estilo K". Ano passado, por exemplo, Kirchner deu um chá de cadeira na ex-CEO da Hewlett Packard Carly Fiorina - na época uma das executivas mais importantes do mundo - que acabou indo embora, furiosa. O presidente também deixou os reis da Espanha esperando mais de três horas, no Congresso da Língua Espanhola em 2004. Os desencontros com Lula são freqüentes. Em dezembro de 2003, o presidente argentino abandonou a Cúpula de Presidentes do Mercosul antes de seu encerramento e não participou da entrevista coletiva com a imprensa. No mesmo dia, o presidente argentino chegara 45 minutos atrasado ao café da manhã que havia marcado com Lula. Uma das maiores mancadas do presidente argentino foi a decisão de não participar da Cúpula do Grupo do Rio, no ano passado.
"Por que voltou Kirchner?", perguntavam ontem os noticiários da TV argentina.
- Os porta-vozes do governo dizem que não havia mais necessidade de permanecer no Brasil. Mas também é importante dizer que os empresários argentinos que se reuniram com o ministro Furlan disseram que a reunião foi péssima e que se sentiram quase maltratados - disse o jornalista Eduardo Navarro, do canal de TV "América".
Segundo versões da imprensa argentina, Kirchner não conseguiu arrancar do Brasil o compromisso de adotar medidas drásticas para equilibrar o comércio entre ambos países, uma das principais preocupações do presidente argentino.
Legenda da foto: KIRCHNER E LULA, no momento da foto oficial da cúpula: o presidente argentino se mostrou impaciente e mal-humorado