Título: FUSÃO, DISFUNÇÃO E DESFUSÃO (FINAL)
Autor: Roberta Da Matta
Fonte: O Globo, 11/05/2005, Opinião, p. 7

Continuemos com o exercício de descobrir as implicações culturais ou simbólicas da fusão, naquilo que Israel Klabin, ex-prefeito do Rio de Janeiro, bem definiu como sendo um dos "estupros políticos" sofridos pela cidade: deixar de ser a capital federal e ter sido "fusionada" ao "estado do Rio de Janeiro" a homonímia traindo, confundindo e acentuando poeticamente todas as diferenças entre as duas comunidades.

Pois para quem morava de um lado e do outro da baía, na capital ou no interior, o Estado da Guanabara retinha uma identidade social ímpar, o que equilibrava parte das incalculáveis perdas simbólicas levadas para uma Brasília então símbolo do otimismo nacional. Vista de Niterói, capital do estado, minha cidade natal e comunidade favorita dentre todas as que conheci nesta vida, lugar onde, como dizia Sérgio Porto, com direito a todas as impunidades, os urubus voavam de costas, o Rio era um espaço separado do mero e trivial território estadual. Era também e sobretudo o sonho de todo sujeito ambicioso que vivia deste lado da baía. E quem morava do lado de lá, numa então esplendorosa e individualizada Guanabara, a "cidade-estado maravilhosa" achava que o melhor de Niterói era a vista radiante do Rio de Janeiro.

Uma das mais claras conseqüências da fusão foi um processo social de desagregação simbólica do Rio de Janeiro. Primeiro, porque nenhuma cidade que foi o centro de uma sociedade e um estado hierárquico e, até anteontem, aristocrático no papel e na prática social, resiste a uma fusão de viés punitivo, ao passar a ser mais uma capital estadual, num claro rebaixamento de status coletivo. De fato, o peso sócio-histórico da cidade, agregado ao seu valor cultural singular como uma sociedade efetivamente cosmopolita e sumamente receptiva e aberta aos visitantes e novos moradores que adquiriam sua cidadania indo à praia, visitando o Pão de Açúcar e o Corcovado ou participando do carnaval, fazia da Guanabara uma comunidade única no cenário nacional. Um centro urbano projetado para ser estruturalmente diferenciado dentro da paisagem federativa. Se todas as capitais do Brasil têm com seus estados uma relação municipal, um elo fundado na semelhança estrutural e orgânica, o Rio de Janeiro tem uma posição singular e aparentemente irredutível vis-à-vis às outras cidades do país e do seu estado. Por tudo o que diz respeito a sua importância e problemática mas, acima de tudo, pela posição que ocupa no quadro simbólico nacional como uma comunidade-cenário de tudo aquilo que foi básico para a constituição da identidade brasileira.

Pois foi nesse espaço carioca que se realizou a primeira síntese de tendências hierárquicas e aristocráticas com ideais modernos, individualistas e igualitários. Daí a praia, o samba e o carnaval; ao lado do "bota-abaixo" modernizador e das disputas politicas onde surgia um liberalismo e um esquerdismo dispostos a golpear as instituições em nome do progresso e da justiça social, típicos do Rio de Janeiro. Daí também a experiência com uma pan-religiosidade que confunde os especialistas (e mais ainda os crentes) por ser simultaneamente exclusiva num nível, mas "católica" (e inclusiva) noutro.

Se São Paulo, Recife, Belém, Porto Alegre, Cuiabá são "capitais" no duplo sentido de serem somatórios burocráticos e simbólicos do modo pelo qual os seus estados se enxergam a si mesmos, o Rio de Janeiro por ter sido corte e capital federal era (e ainda é) um espaço descontinuo junto ao território fluminense. Sua imagem não diz respeito apenas ao Estado do Rio, mas ao Brasil. Klabin está mais do que correto: ser carioca é uma coisa, ser fluminense outra. Vale dizer o Rio é uma capital que vive um paradoxo acentuado pela fusão: é uma capital que não reconhece o seu "interior". Disso decorre uma outra complicação estrutural: como conjugar a administração de uma cidade vocacionada para o nacional com um estado que tem que estar voltado para seus interesses regionais. Como conciliar a rivalidade embutida na prefeitura e no governo do estado, cada qual movimentado por forças que conduzem a lugares diversos. A cidade para o Brasil, o estado para uma regionalidade interiorana. Ser administrador da cidade, portanto, acende ambições nacionais que esbarram no governo do estado. Um dos resultados mais palpáveis dessa segmentação é o jogo de empurra entre o que é obrigação da cidade e do estado.

Um dos esgarçamentos da identidade carioca é que o estado é um peso para a cidade. O oposto é verdadeiro quando a situação é vista do estado. Aqui, é o Rio com seus mega- problemas que onera o estado. Discutir a desfusão é um bom caminho para a recuperação dessa auto-estima urbana que o Rio parece ter perdido. Pode também ser uma via positiva para a solução dos impasses entre o que é federal, estadual e municipal. Desfundir não irá magicamente resolver tudo. Mas não há dúvida que é um passo importante para a recuperação de uma relação positiva entre a cidade, o estado e os seus habitantes.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

N. da R.: Elio Gaspari volta a escrever neste espaço em junho.