Título: Democracia não coube no papel
Autor: Eliane Oliveira, Cristiane Jungblut, Renato Galeno
Fonte: O Globo, 12/05/2005, O País, p. 3
Por pressão árabe, Cúpula deixa de fora da Carta de Brasília defesa da liberdade política
Por pressão dos países árabes, a versão final da Carta de Brasília, divulgada ontem pelos participantes da Cúpula América do Sul-Países Árabes, não tem uma defesa clara da democracia, como propunham os países sul-americanos. O termo democracia aparece apenas de forma implícita no documento, nos parágrafos que falam da eleição no Iraque e da necessidade de democratização das instituições internacionais.
¿ Colocamos o que foi possível no documento. Nem sempre o que você pensa é colocado, e sim o consenso ¿ tentou explicar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A América do Sul tentou incluir um parágrafo que, pelo menos, reforçasse o apoio a governos eleitos democraticamente, mas foi derrotada. Um dia antes da última reunião plenária, segundo fontes da delegação, a palavra chegou a ser escrita, mas acabou sendo retirada, diante da forte resistência dos árabes. Alguns desses países convivem com teocracias, que misturam religião com Estado; outros são monarquias absolutistas.
¿ Seria falta de democracia se tentássemos, em um documento plural, estabelecer o conceito de democracia que eu entendo, sem respeitar o direito de democracia dos outros. Essa é a condição elementar para que você possa construir um documento que envolve mais de 30 países, com culturas totalmente diversificadas, com hábitos políticos diversificados ¿ disse Lula, ao ser indagado se a ausência da palavra democracia não causava constrangimento aos sul-americanos.
Em discurso, Lula dá opinião diferente
Lula esclareceu que pesou na decisão o fato de árabes e sul-americanos terem formas diferentes de pensar em diversas áreas, inclusive em se tratando de regimes de governo. No entanto, no discurso na abertura da última reunião da cúpula, o presidente mostrou o que pensa sobre o assunto, ao lembrar que, no Brasil, convivem povos de todas as raças e religiões, como árabes e judeus.
¿ O que vocês viram aqui, em Brasília, é o que verão em qualquer cidade do país. Verão gente pobre, gente que mora em favelas, gente que protesta contra o governo, gente de todas as cores, dos mais diferentes credos. Mas uma coisa vocês encontrarão: seres humanos que têm um otimismo extraordinário, uma vontade de estabelecer relação com o mundo como poucos e que acreditam, firmemente, que apenas com paz e democracia poderemos construir o mundo que queremos, até porque o mundo que queremos precisa de desenvolvimento.
Prevaleceram os interesses dos árabes na declaração final da Cúpula América do Sul-Países Árabes. Questões como a instituição do Estado palestino, a retirada de Israel dos territórios ocupados, as sanções econômicas impostas à Síria pelos EUA e a criação de uma zona livre de armas nucleares no Oriente Médio foram a tônica da declaração.
De olho num mercado de US$240 bilhões em importações anuais da Liga Árabe, os sul-americanos estavam particularmente interessados em mais comércio e investimentos. O maior destaque da cúpula foi a cobrança do cumprimento de resoluções da ONU. Dois parágrafos afetam, diretamente, Israel e EUA. O primeiro pede que os israelenses desocupem os territórios palestinos invadidos, solicitação justificada pela "necessidade de se obter uma paz justa, abrangente e duradoura". Em outro parágrafo, os signatários expressam "profunda preocupação com as sanções unilaterais impostas à Síria pelo governo dos EUA".
Perguntado se a menção aos EUA e a Israel traria problemas ao Brasil, Lula desconversou. Mas um graduado diplomata brasileiro disse que agradou aos americanos o parágrafo em que é enfatizada a importância de respeitar a unidade, a soberania e a independência do Iraque.