Título: CULTURA DE CIDADANIA
Autor: JORGE MARANHÃO
Fonte: O Globo, 12/05/2005, Opinião, p. 7

Em tempos de rivalidades e instabilidades políticas latino-americanas, e do anúncio da política externa americana para o continente, aproveitei o feriadão de abril e fui conhecer a ¿Suíça latino-americana¿, que é como nossos economistas costumam alcunhar o Chile. Com um dólar mais barato diante da extravagância do euro, somos milhares de brasileiros levantando vôo para conhecer a região. E logo na chegada ao hotel, em Santiago, o primeiro choque cultural: o atendente me desmentia a franquia de acesso à internet incluída no pacote da operadora. Um hotel de cinco estrelas, provido de business center, só tinha um único terminal de computador!

Senti na pele o que pensa o chileno dos seus irmãos ricos do lado atlântico. Santiago é uma cidade sem traços aparentes de conflagração social. Os ricos sobem para as cordilheiras e a grande parte da população habita a planície. O metrô é limpíssimo em contraste com as sucatas dos ônibus e dos taxis. No dia seguinte, chegando a Valparaíso e Vinã del Mar, o panorama urbano mudava. Os ricos estavam em condomínios luxuosos na beira do mar e a população pobre e de classe baixa subia os morros.

Foi aí que sofri o segundo choque. O garçom do restaurante turístico me tratou como brasileiro malandro e relutava em trocar o péssimo prato que me havia servido. Quando enfim pedi pra fechar a conta, ainda me cobrou metade de algo que não havia consumido. Paguei para não me aborrecer. E fui procurar entender melhor a imagem que tinham dos brasileiros, chilenos tão orgulhosos de suas conquistas econômicas, sobretudo na área do turismo.

Reclamei com a operadora que se limitou a pedir desculpas e me entregar um formulário de reclamação. Telefonei para o Serviço Nacional de Turismo e ninguém atendeu! Tampouco o Serviço Nacional de Consumo.

Confesso que fiquei ofendido com a imagem de esperteza que as elites brasileiras andam a projetar pela Latinoamérica. Pois, diante do excesso de orgulho nacionalista chileno, o que resulta do nosso excesso de esperteza é a baixa auto-estima de nossa cultura dominante. Como o governo do Chile quer marcar o bicentenário de independência reurbanizando uma grande praça atrás do Palácio de La Moneda, que se chamará Plaza de la Ciudadania, não pude deixar de comparar com a nossa Praça dos Três Poderes, plena do concreto de um estado burocrata-autoritário e vazia de cidadãos.

Tenho de admitir, todavia, que os grandes problemas da América Latina são comuns a todos os países, mudando apenas o grau de intensidade. Que nossas semelhanças mais nos unem do que nos separam nossas diferenças.

As maiores economias latino-americanas, como Brasil, México, Argentina, Colômbia e Venezuela, bem que se poderiam se juntar ao programa de cultura de cidadania chileno, expresso na primeira página do ¿El Mercurio¿, através de relatos de casos exemplares de boa conduta do cidadão comum e sua participação no debate político. Um programa que poderia ser estendido ao grupo de jornais de fala latina em âmbito continental.

Para enfrentar a expressão comum da miséria cultural das elites e nos mobilizar em torno de uma agenda política positiva: campanhas em defesa da auto-estima nacional, de incentivo ao controle social do Estado, pela reforma política, pela efetivação do Poder Judiciário, pela prioridade do investimento público em educação, incluindo as disciplinas de cultura de cidadania (uma OSPB latino-americana); campanhas em defesa da livre iniciativa e da imagem do empreendedor, pelo estímulo ao debate político aberto da intelectualidade, em defesa dos eleitores e da vigilância civil sobre os mandatos.

Maior engajamento da mídia, enfim, no fortalecimento da sociedade civil com o apoio do empresariado. Em vez de ouvir a sinistra voz dos quartéis, passaríamos a ouvir mais las voces de los ciudadanos, que é a melhor contribuição que o Chile pode dar à comunidade latino-americana! O resto é intriga de casa de pouco pão, onde todos brigam e ninguém tem razão!