Título: TANGO ARGENTINO
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 14/05/2005, O País, p. 3
Os líderes sul-americanos parecem disputar entre si para saber qual é o mais idiossincrático. A tal ponto que o presidente Lula, que até pouco tempo era a representação da besta-fera, transformou-se no grande conciliador regional e pode se dar ao luxo de algumas extravagâncias na política externa enquanto for a melhor alternativa de equilíbrio político na região.
Entre o histrionismo antiamericano de Hugo Chávez, e as bravatas de Néstor Kirchner, Lula representa o líder político mais sensato num continente dominado pelo esquerdismo político.
O socialista Lagos poderia ser uma alternativa, mas o Chile, embora participe de todas as associações, não tem peso político e tem uma condução independente na América Latina que o coloca mais próximo de economias do Primeiro Mundo do que de uma agenda sul-americana.
O comportamento do presidente da Argentina, Néstor Kirchner, nos recentes encontros regionais, culminando com a saída intempestiva da reunião da Cúpula América do Sul-Países Árabes, revela o sentimento de ciúmes que domina sua administração.
Ciúme não é uma palavra política, mas está sendo usada pela diplomacia, pois nenhuma outra expressa melhor o sentimento dos argentinos. Eles sentem uma frustração muito grande por terem perdido terreno para o Brasil, de terem perdido a paridade no tratamento internacional, o que ficou evidenciado na recente viagem da secretária de Estado americana Condoleezza Rice, que simplesmente riscou Buenos Aires de seu roteiro.
Mas, na verdade, o que o Brasil tem oferecido é uma parceria igualitária. Eles se convenceram, erradamente na visão do Itamaraty, de que, ao criar a Comunidade Sul-Americana, o Brasil está enfraquecendo o Mercosul. O governo brasileiro está tentando, através de diversos interlocutores, fazer com que a Argentina entenda que a Comunidade é uma criação eminentemente política, e o Mercosul fundamentalmente econômico, e portanto não brigam entre si.
O protagonismo do Brasil na América do Sul, reduzindo-os à condição de coadjuvantes, é outra queixa recorrente, que revela um sentimento de inferioridade em relação ao Brasil, uma crença de que o Brasil poderia administrar a seu bel-prazer uma reunião de 12 países, e que eles se veriam arrastados por uma força irresistível de nosso peso político e econômico. O governo brasileiro argumenta que para exercer protagonismo, não estimularia a criação de um organismo onde todo mundo tem voz independente. Tentaria fazer uma política bilateral, como os Estados Unidos estão tentando dentro da região que abrangeria a Alca, e não criaria um organismo multilateral.
Esse sentimento de desconforto revelaria uma crença profunda da Argentina na impossibilidade de se utilizar da Comunidade para criar um diálogo sul-americano equilibrado. A recente conversa dos três presidentes, Hugo Chávez, da Venezuela; Néstor Kirchner da Argentina, e Lula, em Brasília, revelou, porém, que a união pode gerar projetos importantes para a região, como a empresa de energia comum, ou o banco de desenvolvimento regional.
Uma das queixas da Argentina é de que as indústrias brasileiras têm o apoio do BNDES, com financiamentos a juros baixos. Embora o banco de desenvolvimento brasileiro esteja aberto a financiar obras de infra-estrutura de integração regional, não é possível financiar a indústria argentina, mas esse banco proposto por Chávez pode ter esse papel.
O governo brasileiro está tentando convencer os argentinos de que, ao invés de jogarem um jogo positivo conosco, estão transformando em derrota o que poderia ser uma parceria proveitosa. Na questão do Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, a Argentina apóia a solução que não aumenta o número de membros permanentes, mas sim os rotativos, que ficariam por mandatos de dois anos, podendo ser reeleitos.
O Brasil, que quer um assento permanente, até já ofereceu à Argentina um lugar na sua delegação oficial, caso sejamos eleitos. Essa atitude não seria novidade, pois os argentinos, enquanto estavam fora do Conselho, tiveram, em 2004, um representante na nossa delegação, o ministro Garcia Moritan, que passou um ano atuando e fez até discurso em nome do Brasil. Agora não é mais preciso porque eles também já estão no Conselho de Segurança como membros rotativos.
Na verdade, o que está em jogo é a crença brasileira, que deveria ser comum aos argentinos, de que só se pode trabalhar a América do Sul através de um entendimento claro entre Brasil e Argentina. O que os argentinos não estariam enxergando é que a América do Sul, por mais institucionalizada que esteja, com o Brasil de um lado e a Argentina de outro, perde a importância.
O governo brasileiro, ao mesmo tempo que dá demonstrações concretas de apoio, tenta convencer os argentinos de que se ocuparem esse espaço que pertence a eles, ao lado do Brasil, tudo se resolve positivamente. Desde a guerra das Malvinas, o Brasil coopera politicamente com a Argentina, tendo negociado todos os acordos com a Inglaterra, e representado a Argentina em todos os fóruns internacionais. Agora mesmo, ainda colocou no comunicado da reunião com os países árabes, uma referência às Malvinas, um claro agrado à Argentina que vai trazer problemas com a Inglaterra.
Num raciocínio bruto, mais difícil do que aceitar a predominância brasileira é acabar ficando sem nada. Ser segundo na América do Sul unida é melhor opção do que ser segundo na América do Sul desunida, é o recado sutil que está chegando a Buenos Aires. (Continua amanhã)