Título: `Abuso do poder econômico restou demonstrado¿
Autor:
Fonte: O Globo, 14/05/2005, O País, p. 13

CONDENAÇÃO POR CLIENTELISMO: `DIZER QUE OS REPRESENTADOS NÃO SABIAM DA ORIGEM CHEGA A SOAR COMO ACHINCALHE¿ Os principais trechos da sentença da juíza que anulou as eleições em Campos e tornou o casal Garotinho inelegível

CHEQUE CIDADÃO: Apenas sob ameaça de ver caracterizado contra si o crime de desobediência, o secretário de Ação Social do Estado do Rio de Janeiro forneceu a listagem dos beneficiários do Cheque Cidadão no município de Campos no ano de 2004. Os documentos originais estão nos autos e a simples observação das informações ali registradas demonstra que não houve inscrições no programa no período de junho a setembro de 2004. Entretanto, a partir de outubro de 2004 ocorre notável acréscimo de cadastrados, ou seja, justamente nas vésperas do primeiro turno das eleições municipais. (...) Um auto anexado ao inquérito comprova que uma professora aposentada distribuía senhas para a atendimento no programa Cheque Cidadão, mediante a apresentação e, por vezes, retenção de cópias do título de eleitor.

MORAR FELIZ POR R$1: Na mesma linha adotada na defesa da regularidade do Cheque Cidadão, também quanto ao Morar Feliz por R$1 foi dito pelos representados tratar-se de programa que já existia muito antes do período eleitoral. Razoável, portanto, que provas nesse sentido fossem apresentadas, especialmente os números indicando que o volume de oferta do benefício não foi alterado nos meses anteriores às eleições. Contrariando completamente tal expectativa, as provas produzidas dão conta que houve no município 3.338 cadastros somente entre os dias 18 e 21/10/2004, mais precisamente a nove dias do segundo turno das eleições. Certamente o déficit habitacional para famílias de baixa renda não existe apenas em Campos dos Goytacazes, de modo que para albergar-se na proteção da legalidade do programa, os representados teriam que demonstrar ¿ além da anterioridade do programa ¿ a uniformidade do benefício por todo o estado.

JOVENS PELA PAZ: Ao contrário do que observa-se em relação aos cadastros do Cheque Cidadão e do Morar Feliz por R$1, o programa Jovens pela Paz teve o maior número de inserção de jovens bolsistas no mês de fevereiro de 2004, distante, portanto, do período das eleições. Ainda assim, houve ingressos posteriores, muitos deles no mês de setembro de 2004, no período crítico, portanto. O que revela o aspecto mais reprovável no tema é a confissão de que os jovens estavam de fato trabalhando para a campanha de Pudim e Claudeci, ostentando a indumentária do programa social. Não houve a prova, sequer indiciária, de que estes jovens atuavam em seus horários de folga. O programa foi suspenso em fevereiro de 2005. Os jovens encaminhados pela Vara da Infância e da Juventude de Campos, sumariamente desligados. Inaceitável a alegação evasiva no sentido de que o programa estava submisso a simples etapa de avaliação.

KITS ESCOLARES: Segundo os documentos de folhas 447 e 448, foram distribuídos somente em Campos dos Goytacazes (não há informação de igual benefício em outros municípios), 43.199 kits, de um total de 60.418 remetidos para tal fim. O custo? R$2.063.380,32. Certamente, faltando menos de dois meses para o término do período letivo, a medida é desprovida de qualquer razoabilidade, culminando por impor prejuízo ao aproveitamento do material, à formação dos estudantes, ao erário público, a princípios basilares da moralidade administrativa.

DINHEIRO DO ESTADO: Documentos dos autos registrados às folhas 74 revelam a importância paga para que a matéria publicitária em contraponto ao editorial jornal O GLOBO circulasse no mesmo periódico: R$165.979,44. O cotejo entre o referido editorial ¿Além dos limites¿ e a resposta do governo do Estado do Rio de Janeiro ¿O GLOBO além dos limites¿ revela de forma incisiva o debate em torno de questões completamente apartadas de temas verdadeiramente institucionais. Muito pelo contrário, o editorial do GLOBO efetivou críticas contundentes ao modo de fazer política (partidária) da governadora do estado do Rio de Janeiro e seu grupo político, a toda evidência referindo-se ao ex-governador, ex-secretário de Estado, presidente estadual do PMDB, Anthony Garotinho. A resposta, também contundente, defende programas, o modo de fazer política, acusa O GLOBO de ter apoiado o golpe militar de 1964, a candidatura do ex-presidente Fernando Collor, enfim, revela contra-ataque completamente dissociado de temas institucionais. Curial (conveniente), portanto, que a ¿defesa¿ fosse patrocinada com recursos do grupo político atingido, não do Estado do Rio de Janeiro, ente não envolvido, seja no editorial do GLOBO, tampouco preservado quanto aos seus interesses que devem ser eminentemente coletivos com a resposta cara e sem sentido institucional. É preciso registrar que não houve negativa da defesa quanto ao teor das declarações da primeira representada acerca dos critérios que norteariam a concessão de benefícios fiscais para o município: a eleição dos candidatos do PMDB. (...) A multa deve ser fixada em seu grau máximo, especialmente pela sua missão pedagógica e preventiva, para refletir sobre a conduta presente e futura dos réus.

CORRUPÇÃO: ¿Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são¿. A frase é de Macunaíma, o herói criado pelo gênio de Mário de Andrade é que infelizmente revela a atualidade do tema envolvendo a corrupção como um dos mais graves problemas das instituições brasileiras. Há diversos tipos de corrupção, com causas diversas, porém todos os tipos são nefastos, pouco importando se cuida-se de corrupção para obter contratos e concessões através da oferta de dinheiro para políticos e campanhas ou captação ilícita de sufrágio, na forma proscrita no artigo 41 A da Lei 9.504/97, em que o voto, princípio e fim da cidadania, é barganhado por dinheiro, por favores, por empregos. A corrupção atrasa os países em desenvolvimento, institui uma cultura condescendente com o crime, ao privilegiar grupos com interesses específicos ou ao deformar a manifestação de vontade dos eleitores, subtraindo-lhes o senso crítico capaz de expurgar maus governantes. E não se olvide que a corrupção, em todas as suas modalidades, causa um mal maior: protege a violência urbana, torna o cidadão comum prisioneiro de um sistema injusto e desigual, de miséria passada de geração para geração e insuscetível de ser abolida com transferência de renda de quinze, cinquenta ou cem reais, para quem vive sem perspectivas, abaixo da linha da pobreza. Na nossa antiga e enraizada tradição política do ¿rouba mas faz¿ ainda ocupa grande espaço no folclore político, sem que se possa perceber o quanto ele é devastador para o desenvolvimento das pessoas e das instituições no Brasil.

CLIENTELISMO: A história política do estado do Rio de Janeiro registra a administração Chagas Freitas como um modelo que fez do clientelismo sua plataforma principal. Exitosa no que diz respeito à geração de votos, mas um retumbante desastre para as perspectivas de futuro do estado, pois deu início a uma crise política que progrediu e ainda devassa o estado, exposto no cenário nacional nas últimas eleições de forma deplorável, com exemplos explícitos de degradação ética e institucional. O estado sai enfraquecido como ente federativo, já que essa imagem negativa certamente prejudica a atuação nacional de bons parlamentares que poderiam ter papel mais efetivo em favor do Rio de Janeiro, que é porta de entrada para o Brasil. O que acontece aqui repercute em diversos países, com especial gravame de vivermos a era das relações econômicas globalizadas, de modo que a degradação da classe política fluminense conduz a uma sensação que nada mais pode ser feito para maior eficácia da gestão de recursos públicos e de que todo o país experimenta os mesmos níveis de desgoverno e comprometimento da máquina administrativa com práticas abusivas e ilegais. O sistema político e a máquina pública em diversos municípios do Estado do Rio de Janeiro precisam ser atingidos pela força mobilizadora da opinião pública ¿ o que é completamente diferente das opiniões publicadas ¿ para que não alcancemos situações parecidas com as cleptocracias africanas de tão devastadoras condutas.

APREENSÃO NO PMDB: É obrigatório que toda movimentação financeira seja registrada em conta corrente, assim como os recursos aferidos na campanha sejam daqueles permitidos em lei. Apesar do amplo cognitivo ofertado aos representados para formular suas defesas, não houve comprovação da origem lítica dos recursos apreendidos. Verdadeiramente, a frágil defesa se esforça ¿ mas não consegue ¿ explicar o inexplicável, ou seja, a origem e o destino do dinheiro distribuído na noite do dia 29/10/2004. A prestação de contas apresentada pelo PMDB não condiz minimamente com o relatório do Comitê Financeiro. Enquanto nas contas do PMDB aparecem doações de pessoas físicas e jurídicas no montante de R$308.830, o comitê financeiro único do PMDB expressa que não houve movimentação financeira, ou seja, que não recebeu ou gastou um único centavo. Ainda que se quisesse argumentar que o dinheiro apreendido pertencia ao PMDB, nenhuma das provas dos autos prestam-se a tal conclusão, ao contrário, revelam a absoluta ausência de credibilidade da prestação de contas do PMDB para sustentar a tese defensiva. (...) Afirmou-se que os recursos oriundos de doações de pessoas físicas e jurídicas eram distribuídos, na noite da apreensão, para o pagamento de pessoas que trabalhavam para a campanha, portanto, prestadores de serviço. Contraditoriamente, a prestação de contas do partido afirma que não foi gasto um níquel sequer com tal rubrica. (...) Os representados juntaram recibos eleitorais comprobatórios das doações com datas posteriores a 29/10/2004, ou seja, o dinheiro que estava sendo distribuído só foi doado após a apreensão. Para desmantelar de vez os argumentos da defesa, o banco ABN Amro Real, banco do qual foi sacado o dinheiro que estava sendo distribuído, comunica ao juízo que nenhum dos representados possuía conta naquela instituição financeira e o PMDB, suposto dono das importâncias apreendidas, abriu uma conta na qual inexistiu movimentação de qualquer espécie. (...) A soma dos valores apreendidos, por sinal, ultrapassa as supostas doações recebidas pelo PMDB, ou seja R$308.830 de doações, contra R$318.470 da apreensão. A ausência de folhas de pagamento dos pretensos prestadores de serviço (relembrando que nenhum documento do partido ou do comitê financeiro dão conta de tais despesas), aliado à natureza das listas de formadores de opinião, que revelavam desde a diligência realizada na casa de Cosme Vendedor (candidato a vereador, em cuja casa foram flagrados cheques-cidadão, durante a campanha), sua verdadeira destinação, converge para a conclusão de que o dinheiro distribuído também destinava-se à compra de votos. (...) Os demais documentos apreendidos revelam que cadastros de programas assistenciais do governo do Estado do Rio eram utilizados para fins de campanha eleitoral, conforme alegado pelo Ministério Público. Dizer que os representados não sabiam da origem de tais documentos e o motivo pelo qual encontravam-se na sede do PMDB chega a soar como verdadeiro achincalhe à Justiça diante das circunstâncias em que o material foi apreendido. O abuso de poder econômico restou sobejamente demonstrado, pois dinheiro de origem não comprovada foi utilizado em campanha eleitoral, revelando decisivo potencial lesivo com efeito à lisura do pleito diante do desequilíbrio entre os concorrentes. (...)