Título: Debate não trouxe à luz pontos obscuros
Autor: Caio Blinder
Fonte: O Globo, 15/10/2004, O mundo, p. 35

Após três debates presidenciais nos EUA, os argumentos são familiares. Como ainda há eleitores indecisos? No terceiro e último debate, os argumentos foram reprisados e afiados, numa recitação de promessas, exageros e distorções. Uma boa notícia: há claras diferenças entre o republicano George W. Bush e o democrata John Kerry sobre terror, Iraque, segurança doméstica, economia, saúde, aborto e casamento gay.

Kerry promete um governo mais eficiente e internacionalista em segurança nacional, acena com uma discutível disciplina fiscal e recorre ao populismo econômico na condição de paladino dos interesses da classe média, ou seja, a massa americana. Bush é mais ideológico, categórico e combativo. O presidente abrandou a lenga-lenga sobre a inconsistência de Kerry. Em especial no último debate, ele recorreu à fórmula demagógica do lendário bruxo eleitoral republicano Arthur Finkelstein de rotular os democratas como liberais!, liberais!, liberais! Na rotulagem americana, liberal é o que no resto do mundo é conhecido como esquerdista.

Há uma diferença profunda entre os candidatos na filosofia de governo. Bush prega um governo muito ativo para botar para quebrar no mundo, buscando alianças por escolha e não por necessidade. Mas quer baixar a bola do governo dentro de casa, estimulando os cidadãos a se virarem nestas questões ¿prosaicas¿ como saúde e aposentadoria. Kerry adverte contra o perigo de privatização e individualização de um pacto social onde o governo tem um papel-chave e muito caro. O democrata também adverte contra o viés unilateralista do republicano fora de casa, mas batendo na tecla que tampouco ele abre mão de prerrogativas imperiais.

Diferenças estão à mostra, mas em meio ao blá-blá-blá muitos componentes da agenda de ambos continuam obscurecidos. David Broder, o veterano repórter do ¿Washington Post¿, enfatiza que Bush e Kerry não foram cândidos nos debates sobre as dificuldades no Iraque. Os argumentos são focalizados no passado. Kerry acusa Bush de ter se precipitado na guerra e o presidente denuncia o democrata por ter tomado posições inconsistentes sobre Saddam Hussein. E o futuro? Correr ou aprofundar o engajamento são opções amargas.

Nos temas domésticos, o debate de quarta-feira não trouxe à luz outros pontos obscuros. Kerry e Bush falam em reduzir pela metade o déficit orçamentário (hoje na faixa dos US$ 415 bilhões) nos próximos quatro ou cinco anos. Mas nenhum deles é generoso para explicar as drásticas medidas para alcançar as metas. São prolixos para acusar o outro de incapacidade de dar conta do recado. Kerry denuncia Bush como ¿um viciado¿ para cortar impostos dos ricos e o republicano bate na tecla que o democrata é um gastador inveterado.

Armas de destruição em massa domésticas não exigem inspetores para serem confirmadas. Em 2050, o número de americanos com mais de 65 anos deve dobrar para 80 milhões. Com isto haverá uma drenagem sem precedentes dos fundos para os programas de saúde e aposentadoria. Como pagar a conta sem aumentar impostos ou cortar benefícios? Bush e Kerry não querem cair na armadilha da candidez. É suicídio eleitoral.

Bem, 2050 é um ano distante. Novembro, o mês da eleição, está aí. A curtíssimo prazo, a dinâmica dos três debates favoreceu Kerry. Ele ganhou de 3 a 0. Mas o próprio candidato a vice democrata John Edwards reconheceu que quem ganha os debates não ganha necessariamente a eleição. Em outubro, a corrida está tão equilibrada como se supunha que estaria. A luta agora é por um punhado de eleitores em um punhado de estados. CAIO BLINDER é jornalista