Título: O PESO DO PETRÓLEO
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 15/05/2005, O País, p. 4

A criação da Comunidade Sul-Americana, com a qual o presidente Lula, em uma das muitas vezes em que usou indevidamente as palavras, queria colocar fora da agenda brasileira as negociações da Alca, é vista como a expressão da política hegemônica brasileira na região, e por isso a Argentina reage tanto a ela.

Como a palavra tem importância fundamental na condução da política externa de um país, a reiterada busca da construção de uma nova ¿geografia comercial¿ no mundo, para podermos ter importância geopolítica na América Latina que nos torne interlocutores obrigatórios nas negociações internacionais, é entendida por nossos parceiros mais próximos como tentativa de usar os vizinhos para se autopromover no cenário internacional.

O objetivo declarado do projeto brasileiro é criar, com a união do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) e do Pacto Andino ( Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia), um pólo político e econômico que se contraponha aos já existentes, como a Comunidade Européia, o Nafta e o grupo de países asiáticos. E que force uma negociação vantajosa da Alca, na impossibilidade de substituí-la.

A administração Bush parece já ter entendido o dilema do governo petista, que é de um pragmatismo surpreendente na condução das negociações políticas, sejam internas ou externas. Tanto que o ex-guerrilheiro José Dirceu transformou-se no auto-proclamado melhor canal de entendimento com a administração republicana, a tal ponto de atribuir-se a ele o desejo de vir a ser, num provável segundo mandato de Lula, embaixador do Brasil em Washington.

Esse pragmatismo faz com que o chamado ¿núcleo duro¿ do governo, que controla o PT, já se tenha convencido, desde a campanha, de que não há condições objetivas para a implantação do socialismo ou para grandes rupturas, e trate de levar o governo dentro de padrões que os críticos chamam de conservadores ou até mesmo neoliberais.

Com relação à retórica, aí são outros quinhentos. Todas as facções e linhas auxiliares abrigadas dentro do PT continuam livres para dizer o que quiserem, discutir o que bem entenderem, desde que na hora de votar votem com o governo.

Na política externa, há um campo mais amplo para bravatas que compensem a ortodoxia da política interna. A política externa americana delega às chamadas ¿potências regionais¿ a mediação dos conflitos de suas áreas, e por isso pediu que o Brasil assumisse a força de paz no Haiti.

A secretária de Estado Condoleezza Rice classificou o Brasil de ¿potência regional prestes a se tornar potência mundial¿, e aparentemente, apesar de tropeços como os ocorridos na recente reunião dos países árabes, a posição de liderança do Brasil na América do Sul lhe garante papel de destaque em Washington.

Ainda mais no momento em que a região está, se não dominada, pelo menos majoritariamente ocupada por governos de esquerda, e com alguns focos remanescentes de movimentos revolucionários como as Farc na Colômbia, o bolivariano neo-socialista Hugo Chávez, e o MST brasileiro.

Lula e a versão pragmática do PT representam a esquerda democrática na América Latina, e são a única força capaz de negociar com esses grupos sem colocar em risco a estabilidade da região. Na recente reunião de cúpula em Brasília, por exemplo, Hugo Chávez parece ter viabilizado propostas como a da televisão Sul ¿ cujo projeto brasileiro já está em andamento e que pode se transformar, com a adesão da Venezuela, em um instrumento de propaganda antiamericana na região ¿ e o do banco de desenvolvimento Sul.

Mas o projeto de maior potencial político é o da união no setor de energia e petróleo. Esse é um projeto de longo prazo estrategicamente importantíssimo, e que pode criar problemas com os Estados Unidos. Há analistas que consideram a parceria com a Venezuela, por causa do petróleo, tão estratégica para o Brasil quanto a da Argentina. O delicado será tirar proveito dessas parcerias escapando das armadilhas de Chávez, que está sempre vendo nelas uma conotação ideológica.

A perspectiva para a segurança energética dos Estados Unidos, segundo alguns analistas, é incerta na melhor das hipóteses e problemática na pior. No mercado internacional do petróleo, existe a taxa de risco do terror, responsável pelo menos por 25% do atual preço, próximo de US$50 o barril e sem indicação de que vá baixar.

As reservas de gás e petróleo da América Latina podem ser essenciais nessa situação de demanda crescente e incerteza econômica. A Venezuela, considerada ¿uma outra Arábia Saudita¿, é vista como uma das responsáveis pelos preços altos, devido à greve dos trabalhadores nas refinarias estatais da Petróleos da Venezuela (PDVSA). A greve retirou do mercado internacional cerca de 200 milhões de barris de óleo cru e gasolina.

Contraditório, o presidente Chávez defende a redução da produção, para manter os preços altos, mas anunciou recentemente que vai investir US$37 bilhões nos próximos cinco anos para dobrar a produção venezuelana para cinco milhões de barris por dia até 2009. A América Latina tem cerca de oito trilhões de metros cúbicos de gás, e nesse campo o Brasil é um parceiro importante. Como se vê, a estabilidade do mercado internacional de energia pode passar pela América Latina, o que aumenta o peso político da região.