Título: Encontrar o tom
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 12/05/2005, Economia/ Panorama Econômico, p. 26

A idéia foi boa; a execução, bem menos. Reunir os países da América do Sul aos países árabes é uma iniciativa ousada e inovadora da política externa. Deixar a agenda ser ocupada demais pelos temas políticos, obrigar-se a contornar a palavra democracia para não ferir suscetibilidades e armar mais um palco para Hugo Chávez e suas diatribes antiamericanas foram, evidentemente, erros.

A palavra aparece só uma vez, mas numa referência à necessidade de mudar os mecanismos de poder da ONU, e não como o melhor regime para a política interna. O presidente Lula justificou a ausência da palavra democracia no comunicado dizendo que seria falta de democracia impor o conceito. Não é bem isso. Comunicados conjuntos expressam também os princípios e valores que os dois lados querem deixar registrados. Da mesma forma que eles quiseram deixar claro o direito de resistência em territórios ocupados, o Brasil deveria ter deixado registrados nossos princípios e valores democráticos. Não é para impor a eles estilo de governo, mas, sim, para reforçar a nossa convicção de que esse é o caminho que a Humanidade deve trilhar.

No começo dos anos 80, o país estava em plena abertura política e à frente, nesse processo, de vários países da região. Mas ainda era o regime militar. Apesar disso, a palavra democracia freqüentava os discursos e comunicados como aspiração dos povos da região. E as décadas seguintes viram a democracia se espalhar pelo continente; com raras exceções. Para se ter uma idéia, haverá seis eleições presidenciais na região entre dezembro de 2005 e dezembro de 2006.

Houve até um fato curioso. O presidente Figueiredo sempre falava nessa aspiração pela democracia nos seus discursos na região. No Chile de Pinochet, a palavra sumiu. Como agora. Naquela época, fazendo reportagens sobre a visita do presidente brasileiro, aproveitei um descuido da segurança e perguntei a ele por que evitara a palavra democracia. Ele, ao lado do general chileno, deu uma resposta inesperada:

- Quer que eu fale de democracia? Pois falarei agora: Viva la Democracia! - disse, elevando a voz no fim.

O episódio foi engraçado, até pela cara perplexa de Pinochet e um certo ar de "o que é isso companheiro?". Mas o fato sério é que, se naquele momento a diplomacia brasileira sempre deixava registrado o anseio da sociedade brasileira, por que esquecê-lo agora quando a conquistamos integralmente e sabemos de suas virtudes? Apenas para não incomodar os ditadores árabes? Se tivemos que engolir as preocupações deles, por que não registrar nossos valores? O presidente Lula tem sido mal informado sobre os limites da diplomacia. Durante a ditadura militar, não foram poucos os governantes estrangeiros que, depois de falar com o governante da ocasião, foram falar com a oposição. Quando Lula foi a Cuba, ele nada falou sobre os dissidentes cubanos.

A falta de resultados concretos do evento na área comercial e econômica não desmerece o encontro desta semana em Brasília. Durante o encontro, houve centenas de contatos entre empresários latinos e árabes. Reuniões prosseguem hoje em São Paulo. Mesmo que a maioria for de lenta maturação, terá sido importante. O comércio entre as duas regiões não é muito grande, mas isso pode ser visto também como oportunidade. O fato, em si, foi importante.

A diplomacia brasileira no governo Lula tem tido algumas vitórias, mas cometido muitos erros também. E o governo não tem demonstrado capacidade de ouvir as críticas. Seria bom que as ouvisse.

O Brasil votou constrangido no candidato uruguaio à diretoria geral da OMC. Perez del Castillo foi pessoalmente desqualificado pelo Brasil, num gesto estranho à diplomacia brasileira. Uma das lições de ouro do Itamaraty sempre foi não criticar pessoas. No episódio, o Brasil desgastou um dos seus brilhantes quadros, o embaixador Seixas Corrêa, que embarcou numa aventura sem chance de sucesso e foi descartado na primeira das três votações. Especialistas no assunto disseram o tempo todo que a candidatura não teria chance, por não ter sido adequadamente articulada.

Razões para ficar irritado com Perez del Castillo o Brasil tinha, de fato. Na reunião de Cancun, ele era secretário do Conselho da OMC e, ao fazer o resumo das posições expostas, deu ênfase apenas às posições dos países ricos e tentou ao máximo ignorar o grupo dos 20. Errou, porque o G-20 virou um fato consumado e é uma das mais importantes vitórias do ministro Celso Amorim. Há muitos interesses divergentes entre os 20, e eles não são a voz do Sul, mas o grupo virou um interlocutor. Del Castillo tentou ignorar o que estava acontecendo em Cancun e o Brasil se sentiu traído. Depois, cometeu o erro de reagir com o fígado diante da candidatura de Castillo. O uruguaio vai perder a disputa para Pascal Lamy, mas o pior do episódio para o Brasil foi exibir um inédito amadorismo numa disputa internacional.

É legítimo que o Brasil queira ter um papel mais decisivo na política internacional, mas deveria ter a sabedoria de conservar as velhas e boas lições da diplomacia brasileira.