Título: A VIAGEM DA ESPERANÇA DURA MAIS DE 50 HORAS
Autor: Paulo Marqueiro e Selma Schmidt
Fonte: O Globo, 15/05/2005, Rio, p. 26

Bom humor atenua o desconforto no ônibus que liga diretamente o sertão a Rio das Pedras, com escala na Rocinha

Três eixos, poltronas reclináveis e banheiro a bordo. O ônibus da Itapemirim estacionado numa rua de Varjota, no sertão do Ceará, com destino às favelas de Rio das Pedras e Rocinha, no Rio de Janeiro, em nada lembra os antigos paus-de-arara ¿ caminhões que nas décadas de 40 e 50 transportavam retirantes para as metrópoles do Sudeste. Mudaram as carrocerias, mas não os passageiros. Dos 36 adultos, quase a metade (15) estava deixando a terra natal em busca de emprego na capital fluminense, no último dia 28 de abril.

O ônibus, que faz a linha Ipu-Rio, partiu da garagem em Sobral, no interior do Ceará, às 5h30m. Depois de passar por Guaraciaba, chega a Varjota, onde embarca a maior parte dos passageiros. Eles pagaram R$239 pela passagem. Estão carregados de sacolas e caixas. Na bagagem, produtos típicos do Nordeste ¿ feijão-de-corda, rapadura e queijo coalho ¿ ocupam espaço. Dos 15 que estavam vindo morar no Rio, seis eram jovens que não conheciam a cidade. Como Vladimir Feitosa Rodrigues, de 18 anos:

¿ Meu irmão, que trabalha num restaurante como sushiman, vai tentar conseguir um emprego para mim ¿ disse Vladimir, que foi morar com o irmão Valdeir, em Rio das Pedras. ¿ Quero juntar dinheiro para comprar a minha moto.

Para passar o tempo, Vladimir recorre ao jogo eletrônico. A mão esquerda mutilada, deslizando sobre o aparelho, denuncia uma realidade cruel: ele perdeu três dedos ao se acidentar numa máquina de espalhar massa, quando trabalhava numa padaria de Guaraciaba. Tinha apenas 11 anos.

Na viagem, acompanhada pelo GLOBO, as paradas se sucedem: Ipu, Ipueiras, Nova Russas. O pinga-pinga pelo sertão não tira o bom humor dos passageiros. Ao meio-dia, o ônibus finalmente segue viagem. O clima de excursão é reforçado por um guia improvisado: o vendedor das passagens, Antônio Mitonho Ramos Matias.

A inesperada visita de André Agassi e Ronaldo

Dentro do ônibus, nada escapa à filmadora de Antônio Marcos Rodrigues de Souza, morador e dono de um bar em Rio das Pedras. Do lado de fora, a caatinga domina a paisagem. Embora escassa, a chuva nesta época do ano garante o verde da vegetação. Os sertanejos sabem que é por pouco tempo: a seca está sempre à espreita.

Ao longo do trajeto, conversas e brincadeiras aproximam pessoas de todas as idades. Cada um conta sua vida. Felipe Aragão, de 13 anos, fala sobre a Favela da Rocinha, onde morou durante anos, e explica por que não se preocupa com os tiroteios.

¿ Sou ¿The Flash¿. As balas não me pegam ¿ brinca, provocando gargalhadas.

Em Crateús, o motorista Agaci Fernandes Ribeiro passa em frente à sua casa e dá uma buzinada, despertando a atenção dos filhos André Agassi (homenagem ao tenista americano) e Ronaldo (referência ao Fenômeno), de 4 e 3 anos. Sem roupa, eles correm até o ônibus para cumprimentar o pai.

O ônibus faz uma parada para o almoço em Crateús. O restaurante fica praticamente às moscas, já que a maioria dos passageiros levou comida de casa. O franguinho com farofa é, de longe, o prato preferido.

Entre Tauá ¿ um dos municípios mais secos do Ceará ¿ e a divisa com o Piauí, surge o pior trecho do trajeto: são 82 quilômetros da BR-020. Para percorrê-lo, gastam-se mais de duas horas. Devido à sucessão de buracos, o motorista precisa trafegar pela contramão. No Km 14, uma cratera de 800 metros de extensão e um metro de profundidade toma conta do acostamento. O trecho é temido também devido ao grande número de assaltos.

¿ Nossa Senhora da Aparecida nos acompanhe ¿ reza Maria Silvia de Oliveira, 54 anos, quando o ônibus sai de Tauá.

O momento de maior descontração acontece na madrugada do dia 29, quando o ônibus faz uma parada em Petrolina, cidade às margens do Rio São Francisco, depois de passar por Picos, no Piauí, e Ouricuri, em Pernambuco. Antônio Tarcísio Dias encontra um objeto no corredor e pergunta:

¿ Alguém perdeu uma dentadura?

Hilda Magalhães Rodrigues, uma bem-humorada senhora de 64 anos, que viaja para visitar os cinco filhos no Rio, constata a perda e corre em direção a Tarcísio:

¿ Obrigada, senhor, obrigada! ¿ agradece ao ver que a dentadura estava intacta.

O herói de dona Hilda faz também o papel de violeiro da viagem. Acompanhado de um violão, ele distrai os passageiros cantando sucessos da MPB. Tarcísio tenta a sorte no Rio pela segunda vez.

¿ O que aparecer no Rio eu pego. Até limpar banheiro ¿ afirma.

`Prefiro o ar condenado ao ar condicionado¿

Francisco Antônio Ramos, de 18 anos, que não conhecia o Rio, tem outros planos. Ele vendeu a moto, uma de suas paixões, para viajar. Quer estudar mecânica e voltar a Varjota para montar uma oficina.

Sem desgrudar do radiogravador, Antônio Carlos da Silva Rodrigues, de 18 anos, é uma espécie de DJ da viagem. Ele põe para tocar, até de madrugada, o forró ¿Homem safado¿, da banda Companhia do Calipso, do Maranhão. Antônio Carlos é outro jovem que vem morar no Rio pela primeira vez. Mesmo caso de Antônio Cícero da Silva, de 24 anos, que deixou a mulher e a filha de 2 anos em Guaraciaba, onde tem uma loja.

¿ Vou juntar dinheiro no Rio para melhorar minha loja ¿ diz Antônio Cícero.

Ao amanhecer do dia 29, o ônibus passa por Capim Grosso, município pobre do sertão baiano. A paisagem muda e agora o que mais chama a atenção são as favelas, com barracos de madeira e taipa.

A chegada a Feira de Santana, na Bahia, marca a transição da região semi-árida para os tabuleiros costeiros. Nova parada para o café da manhã. O ônibus ¿quentão¿ é substituído por outro, com ar-condicionado ¿ mudança que desagrada à maioria dos passageiros. Hora de sacar toalhas e lençóis para amenizar o frio inesperado.

¿ Estou me sentindo um pingüim. Prefiro o ar condenado ao ar-condicionado ¿ brinca o irreverente Felipe Aragão.

Em Feira de Santana, o ônibus pega a BR-101. Depois de uma parada em Gandu, onde os passageiros têm de optar entre o almoço ou o banho, já que o tempo é escasso para os dois, a viagem prossegue. Na passagem por Itabuna, terra do cacau, Maria Lúcia Mesquita, que faz 47 anos, ganha boné e chaveiro do restaurante Terra Mar. Ela está vindo morar no Rio pela segunda vez.

A viagem pela Bahia é longa e somente no início da madrugada de 30 de abril chega-se ao Espírito Santo. Apesar dos sacolejos na BR-101, a maioria dos passageiros dorme. E acorda, por volta 7h, já no Estado do Rio. Em Campos, no Norte Fluminense, última parada antes da Rodoviária Novo Rio, muitas pessoas aproveitam para tomar banho.

Por volta das 11h, o mar surge pela primeira vez na janela. A vista de um pedaço da Baía de Guanabara, na Niterói-Manilha, chama a atenção de Francisco:

¿ Que mar poluído! ¿ espanta-se.

A parada na rodoviária acontece às 11h30m. Mas poucos passageiros desembarcam. O ônibus segue rumo à Rocinha, onde chega no início da tarde. Alguns passageiros se surpreendem com o tamanho da favela. O jovem Vladimir salta e reencontra Valdeirla, que cai em prantos ao abraçar o irmão que não via há dois anos.

Da Rocinha, o ônibus vai para o ponto final, em Rio das Pedras, onde chega às 13h40m. Para os que embarcaram em Varjota, foram 2.800 quilômetros, 51 horas, 15 paradas (de Crateús a Campos) e oito motoristas. Da viagem que une a favela e o sertão, fica a impressão de que a pobreza esteve estampada o tempo todo na janela.

A REALIDADE DEIXADA NO SERTÃO na página 28