Título: `A GENTE ALMOÇA NO MEIO DA TARDE PARA COMER UMA VEZ SÓ¿
Autor: Paulo Marqueiro e Selma Schmidt
Fonte: O Globo, 15/05/2005, Rio, p. 26

Falta de emprego expulsa moradores do sertão para o Rio e separa famílias

Parte do futuro de Varjota, no sertão do Ceará, ziguezagueava pelas margens da rodovia estadual CE-366, na manhã de 27 de abril: o menino Marcos Antônio da Silva, de 11 anos e aparência de 8, tocava o gado tentando impedir que bois, vacas e bezerros invadissem a pista, um problema freqüente em estradas da região. O serviço lhe rende por mês cerca de R$30, dos quais metade ele dá para a mãe.

¿ Quando crescer quero ser doutor ¿ diz o franzino Marcos Antônio, que cursa a quarta série do ensino fundamental.

O menino está ao lado do primo Tiago Paiva Chaves de Souza, de 11 anos, que trabalha para os pais, donos das cabeças de gado. Os dois acordam todos os dias às 5h para pastorear. Por enquanto, trabalho não falta, mas é possível que no futuro eles sejam obrigados a buscá-lo em outro lugar. O próprio Tiago tem oito irmãos que migraram para cidades como Rio e São Paulo.

Mesmo separadas do Rio por quase três mil quilômetros, cidades do sertão do Ceará mantêm laços com a capital fluminense. Difícil encontrar alguém que não tenha parentes ou amigos morando no Rio. Apesar da existência de açudes na região, como o de Araras, o clima semi-árido limita o trabalho nas áreas rurais à pecuária e à agricultura de subsistência (basicamente milho, feijão e mandioca).

Devido à falta de emprego, municípios como Varjota, Santa Quitéria, Cariré, Nova Russas, Hidrolândia, Ipu e Ararendá, no Ceará, estão entre os que mais perdem moradores para o Rio. A realidade das cidades é parecida: falta saneamento básico e há poucos hospitais, postos de saúde e escolas. Como não existem ônibus urbanos, as motos tornaram-se o principal meio de transporte. E o serviço de mototáxi se transformou numa das principais fontes de renda para moradores da região.

Dos 16.500 moradores de Varjota, pouco mais de três mil vivem na área urbana. O único hospital do município ¿ o Maria Conceição Magalhães Ramos ¿ só tem condições de atender a casos sem gravidade. A unidade não tem UTI, aparelho de raios X e não faz cesariana.

¿ Os casos mais graves são encaminhados a Sobral ¿ explica a diretora do hospital, Fátima Bastos Lopes, que tem três filhos morando no Rio (um na Rocinha, outro em Rio das Pedras e um terceiro no Pechincha, em Jacarepaguá).

`Se tivesse saúde, estaria no Rio até hoje¿

Francisco Soares de Araújo, de 56 anos, mora com a mulher, Neuma Ferreira dos Reis, de 39, e cinco filhos numa casa de taipa no bairro de Ararinha, área urbana de Varjota. A caçula tem 1 ano e 3 meses e o mais velho, 15 anos. O casal teve seis filhos, mas um morreu aos seis meses.

Na casa de telhas furadas e chão de terra batida, Francisco conta que amputou parte de um pé por causa do diabetes. Como não pode trabalhar, a família vive com o dinheiro dos programas Fome Zero (R$50) e Bolsa Escola (R$15, recebido por apenas um dos filhos) e com a ajuda de vizinhos. O casal já morou no Rio duas vezes e retornou quando Francisco adoeceu.

¿ Se estivesse bem de saúde, estaria no Rio até hoje ¿ garante Francisco.

Somente a filha mais velha, Adriana, tem uniforme para ir à escola. Os poucos brinquedos que as crianças ganharam são guardados com cuidado por André e Ilmar, de 6 e 7 anos, numa caixa de papelão: carrinhos velhos sem rodas e pedaços de madeira. A caçula Caiane brinca com uma boneca sem braço.

O bairro de Ararinha foi erguido ao lado do Açude de Araras. A maior parte dos moradores vive da pesca. Para aqueles que não têm canoa e rede, resta trabalhar como auxiliar de pescador. É o caso de Francisco das Chagas Rodrigues, de 35 anos, que precisa contar com a ajuda da mulher, Vanusa Jesuíno Soares, de 32, para garantir o sustento da família. Ela costura redes e lava roupa para fora. E ainda cuida de sete dos oito filhos (a de 16 anos é casada e mora fora).

¿ A gente vive pelo milagre de Deus ¿ afirma Francisco, que morou quatro vezes no Rio.

Não menos difícil é a vida da família de Rosa Cardoso Moura, de 47 anos, Vilemar Moura, de 29, e seus três filhos. Há cinco anos, Vilemar passou um mês no Rio, na casa de um irmão no Morro dos Macacos, e retornou para o Ceará porque não tinha como conseguir emprego.

¿ As crianças merendam na escola e nós almoçamos no meio da tarde, para comer só uma vez por dia ¿ conta Rosa.

O filho mais velho de Rosa, Francisco de Moura Souza, de 24 anos, retornou há um ano de Rio das Pedras. Ele trabalhava como ajudante de cozinha num restaurante da Barra da Tijuca, mas a saudade da mulher Edina e dos dois filhos à época (hoje são três) o fez retornar ao Nordeste. A casa da família em Ararinha faz parte dos 12,7% de residências brasileiras que, segundo o IBGE, não têm TV ou geladeira.

No trajeto entre os municípios de Varjota e Hidrolândia, são comuns as cenas de crianças trabalhando para ajudar a família. Como Iranete Lopes Teixeira e Linaldo Moura Rodrigues, de seis anos. Diariamente, depois de voltarem da escola, eles carregam lenha para o fogão da casa dos pais, na Ilha de Izaú, em Hidrolândia.

Em Nova Russas, a dificuldade de emprego transformou a vida das bordadeiras e rendeiras Maria da Conceição Pinho, de 45 anos, e Maria de Fátima Leontina de Souza Araújo, de 51, num vaivém entre o Ceará e o Rio.

¿ Fico com medo dos assaltos na estrada, mas a gente é obrigada a se arriscar. Não tenho condições de morar no Rio. Lá o aluguel é muito caro ¿ diz Fátima, que tem quatro filhos em Rio das Pedras.

Dois dos quatro filhos de Conceição também estão no Rio. Um deles chegou mês passado:

¿ Se tivesse condições de comprar um barraco, eu me mudaria para o Rio ¿ diz.

Hospital sem médico no Cariré

Em Cariré, a realidade é semelhante. Há cerca de um mês, Maria Lúcia Mesquita, de 47 anos, e o marido Robson Costa Lima, de 32, resolveram deixar o distrito de Tapuio para voltar a morar no Rio. A decisão foi tomada depois que Lúcia sentiu-se mal, foi ao posto de saúde de Tapuio, mas não havia aparelho para medir sua pressão.

Robson levou a mulher para o centro de Cariré. Lúcia estava com muita dor de cabeça. A caminho do hospital, ela desmaiou e precisou ser atendida por um farmacêutico, que mediu a pressão e receitou um remédio para hipertensão. Em seguida, eles foram para o Hospital de Cariré, mas, ao chegarem lá, não havia qualquer médico. Lúcia foi atendida por um enfermeiro.

¿ Por que as pessoas do interior não têm direito a nada? ¿ questiona Lúcia.

Apesar das dificuldades do lugar, a jovem Luzineide Macedo de Abreu, de 17 anos, que aos 8 esteve na Rocinha, onde vivem duas de suas irmãs, prefere continuar morando em Tapuio. Em 25 de abril, na Igreja Nossa Senhora de Nazareth, Luzineide se casou com Antônio Alves da Silva, de 21 anos, que conheceu há seis meses. Antonio morou oito meses com seus padrinhos em Saracuruna, na Região Metropolitana do Rio, mas diz não ter saudades de lá.

¿ Aqui é melhor. A gente sempre arranja o que comer, mesmo quando não há emprego ¿ afirma Antônio, que trabalha na lavoura e como pedreiro.

Luzineide é a caçula de José Cândido de Abreu, de 65 anos, e Helena Macedo de Abreu, de 55. Eles tiveram 13 filhos, cinco dos quais morreram pequenos. O casal cria ainda a neta Larissa, de 6 anos, filha de Maria das Dores, que mora na Rocinha. Junto com Luzineide, José Cândido e Helena foram buscar Larissa na Rocinha ainda bebê. Na época, haviam matado cinco bandidos e houve um tiroteio no alto do morro.

¿ Minha mulher e Luzineide dormiram embaixo da cama. Tive vontade de ir embora correndo. Mas não podia, porque tinha de esperar que mandassem o dinheiro das passagens de ônibus ¿ conta José Cândido.

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