Título: DA MISÉRIA DO SERTÃO À REALIDADE DA FAVELA
Autor: Paulo Marqueiro e Selma Schmidt
Fonte: O Globo, 15/05/2005, Rio, p. 26

Sonho de vida melhor ainda atrai nordestinos, mas 40% acabam em áreas carentes do Rio

Osol está começando a iluminar a caatinga quando Antonia Queila de Sousa Freitas, de 16 anos, entra no Açude de Araras, no sertão do Ceará, para o último banho antes de partir. São 5h30m de 28 de abril. Depois de trocar de roupa e pegar a bagagem, ela abraça calorosamente os avós, a mãe e seis dos oito irmãos. O pai, Francisco José de Sousa, a leva no colo até a canoa e a acompanha durante os 55 minutos de travessia do açude. Queila chora ao longo de quase todo o trajeto. À medida que o barco avança, ela vai deixando para trás a família e a casa modesta na Ilha de Izaú, área rural de Hidrolândia, onde nasceu e foi criada.

¿ É a primeira vez que me separo de meus pais e de meus avós ¿ explica.

Depois de deixarem a canoa, Queila e o pai pegam uma caminhonete até Varjota ¿ cidade a 288 quilômetros de Fortaleza ¿ onde vão embarcar para o Rio de Janeiro. Queila está acompanhada de Melria Lopes Teixeira, de 18 anos, mulher de um de seus primos; da filha de Melria, Maria Clarice Sousa Soares, de 1 ano e 3 meses, e do tio Francisco Jesuíno de Souza, de 58 anos. Todos têm o mesmo objetivo: morar no Rio. Já em Varjota, Queila despede-se do pai com um demorado e comovido abraço. Francisco mal consegue disfarçar a desaprovação pela decisão da filha. O ônibus da Viação Itapemirim parte às 10h20m.

¿ Sempre que Queilinha falava da viagem, eu ficava com a cabeça quente. A gente cria uma filha e de repente ela vai embora. Mas Jesus consola ¿ diz Francisco, que já morou no Rio duas vezes.

IPP: migração contribui para expansão de favelas

Na tarde de 30 de abril, mais de 50 horas depois da partida, Queila desembarca na Favela de Rio das Pedras, em Jacarepaguá. Lá, reencontra o marido, Carlos Evilane de Freitas, de 21 anos, que já estava morando no Rio, e com ele segue para outra favela, Gardênia Azul. Por uma rua enlameada, margeando o poluído Canal do Anil, chega ao seu novo endereço: um barraco de nove metros quadrados cedido pela sogra. É o fim da viagem de quase três mil quilômetros e, para o casal, o ponto de partida de uma vida melhor.

¿ Por enquanto não penso em ter filhos. Meu sonho é arranjar um emprego ¿ diz ela.

O jovem casal repete a trajetória de outros retirantes, que, fustigados pela seca, pela fome, ou pela falta de emprego, deixam o Nordeste rumo ao eldorado do Rio de Janeiro. O GLOBO foi até o Ceará para acompanhar a viagem de esperança desses brasileiros que fogem da miséria do sertão e caem na miséria da favela. As histórias são o tema de uma série de oito reportagens a partir de hoje.

Um estudo recém-concluído pelo pesquisador Fernando Albuquerque, gerente do projeto Componentes da Dinâmica Demográfica, do IBGE, revela que 40% (39.504) dos 98.808 nordestinos que migraram para o município do Rio, entre 1995 e 2000 (ano do último Censo), moram em favelas. Dependendo do estado de origem, esse percentual pode ser ainda maior. Dos que chegaram do Ceará, por exemplo, 50% foram para as favelas. Entre os piauienses e paraibanos, 46% tiveram o mesmo destino.

A demanda entre cidades do Nordeste e as comunidades pobres do Rio é tanta que já existem linhas fazendo a ponte sertão-favela. A cada mês, pelo menos dois ônibus da Viação Itapemirim partem do Nordeste (um do Ceará e outro da Paraíba) com destino às favelas da Rocinha e de Rio das Pedras. Outros dois fazem o trajeto inverso. As passagens são vendidas pela agência VRM Turismo, que funciona dentro das duas comunidades, e por representantes da operadora nas cidades de Varjota e Cariré, no Ceará, e de Campina Grande, na Paraíba.

Segundo o diretor de Informações Geográficas do Instituto Pereira Passos (IPP), Sérgio Besserman, a migração é um dos três fatores que mais contribuem para o crescimento das favelas do Rio. Os outros são a taxa de fecundidade extra (acima da média da cidade) e o crescimento vegetativo (migração dentro do próprio município e taxa de fecundidade média da cidade). Ainda de acordo com o órgão da prefeitura, a entrada de migrantes no Rio responde por 18,4% do crescimento das favelas.

Uma viagem às cidades de origem dos migrantes nordestinos ajuda a entender o que os leva a trocar a terra natal por regiões que registram os piores índices de desenvolvimento humano (IDH) do Rio e, em alguns casos, são dominadas por traficantes de drogas e submetidas a toques de recolher.

¿ Na Ilha de Izaú, o único trabalho é a pesca. Tem dia que dá e tem dia que não dá ¿ diz Queila, que sonha juntar dinheiro para mobiliar a casa que ganhou no povoado, onde pretende voltar a morar.

Apesar do Açude de Araras, que ameniza os efeitos da seca, moradores de Hidrolândia enfrentam uma dura realidade. As casas dos pais e dos avós de Queila não têm redes de água ou esgoto. Segundo o IBGE, apenas 39% das residências no município são servidas por rede de água. E somente 0,5% conta com sistema de esgoto.

A esperança de vida ao nascer na Região Nordeste é de 66,7 anos, enquanto a do Sudeste é de 70,1 anos. A taxa de mortalidade infantil é de 41,4%, o dobro da registrada no Sudeste (20,2%). Queila é um doloroso exemplo dessas estatísticas: ela perdeu dois de seus dez irmãos com pneumonia: um com 9 meses e outro com 1 ano.

As primeiras impressões da jovem cearense no Rio foram um misto de otimismo e perplexidade. Durante a parada do ônibus na Rocinha, antes de ir para Rio das Pedras, ela disse ter ficado assustada com o tamanho da favela:

¿ Não imaginava que fosse tão grande.

O chão de lajota do barraco de um cômodo em Gardênia Azul havia sido encerado pelo marido, que estava no Rio desde 15 de março. Depois de conseguir um emprego como auxiliar de cozinha num restaurante da Barra, ele pôde finalmente concretizar o sonho de trazer a mulher. A solidão de Carlos era a mesma de outros migrantes que deixam as famílias no Nordeste e vêm para o Rio em busca de trabalho.

O drama da separação estava estampado nos rostos das pessoas que acompanharam Queila na viagem ao Rio. Melria veio ao encontro do marido, Antonio Soares de Souza, que há seis meses trabalha como cozinheiro num restaurante do Recreio. Ele alugou um quarto em Rio das Pedras e mandou buscar a mulher e a filha.

Francisco Jesuíno de Souza, tio de Queila, deixou no Ceará a mulher, Maria Jesuína Soares, com a promessa de trazê-la mês que vem. Mas os filhos de 10, 11 e 12 anos ficarão com a avó. O mais velho, de 20, está morando em Rio das Pedras.

¿ O Rio não é um bom lugar para se criar um filho ¿ teoriza Maria, no sertão do Ceará.