Título: Repressão no pátio da fábrica
Autor: José Casado
Fonte: O Globo, 15/05/2005, O Mundo, p. 38

Empresas colaboraram com militares para perseguir ativistas sindicais no Brasil e na Argentina

Foi uma terça-feira atípica aquele 4 de novembro de 1969: o Corinthians batia o Santos por 2x0 e acenava com uma segunda vitória depois de 11 anos de absoluto jejum contra o time de Pelé. O corinthiano Luiz Inácio Lula da Silva, então diretor-suplente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, estava preocupado com a bola no gramado. Continuou assim quando, no intervalo, os alto-falantes anunciaram que a polícia matara o terrorista Carlos Marighella, líder da Aliança Libertadora Nacional. Começava um novo ciclo na ditadura militar, com escalada repressiva e crescimento recorde na economia (9,5%).

Na manhã da terça-feira seguinte (11 de novembro), representantes de Volkswagen, General Motors, Chrysler, Firestone, Philips e Constanta se reuniram com o chefe do Departamento de Ordem e Política Social (Dops) no ABC paulista, Israel Alves dos Santos Sobrinho, e o major Vicente de Albuquerque, do IV Regimento de Infantaria do Exército. Na delegacia estiveram Evaldo Herbert Sirin, da General Motors; Mário de Souza Campos, da Chrysler; A. J. Vieira, da Firestone; coronel Evaldo Pedreschi, da Philips; major Adhemar Rudge, da Volkswagen; e Synésio de Oliveira, da Constanta.

Chefes das seções de segurança interna dessas indústrias queriam acelerar o funcionamento do Grupo de Trabalho (depois chamado Centro Comunitário) que serviria de cobertura à colaboração entre empresas privadas do ABC paulista, o Dops e o Exército. Segundo a ata da reunião, debateram ¿problemas¿ nas fábricas, decidiram a compra de ¿mapas do Grande ABC e outros artigos¿, e estabeleceram um Centro de Coordenação no Dops.

¿ Estávamos defendendo nossas empresas dos terroristas, da subversão ¿ conta Synésio de Oliveira, o representante da Constanta (empresa incorporada ao grupo Philips em 1998). ¿ O esquema era: se houvesse um caso suspeito, comunicávamos à comunidade (de informações).

Cooperação intensa e sempre discreta

A cooperação entre empresas e ditadura militar foi permanente, intensa e quase sempre discreta, revelam documentos inéditos guardados nos arquivos do extinto Dops paulista. Uma parte foi descoberta e entregue ao GLOBO pelo historiador Antonio Luigi Negro, autor de um excelente livro sobre a emergência do sindicalismo brasileiro depois da Segunda Guerra (¿Linhas de Montagem¿, Editora Boitempo, 2004). Outros papéis foram localizados em arquivos públicos e particulares de São Paulo, Buenos Aires e Washington.

O conjunto é eloqüente na demonstração de um colaboracionismo muito além dos milionários donativos empresariais recolhidos pelo banqueiro Gastão Vidigal, o industrial Henning Albert Boilesen e o advogado Paulo Sawaia para custear a criação de um corpo de polícia política dentro do Exército (a Operação Bandeirantes). O intercâmbio entre empresas e órgãos de segurança ultrapassou o fornecimento rotineiro de Fuscas da Volkswagen, de Galaxies blindados da Ford, de caminhões da Ultragás, de refeições congeladas Supergel e de ¿gratificações¿ às equipes dos porões do regime.

Grandes empresas recrutaram pessoal nas Forças Armadas e na polícia, mantiveram aparatos de espionagem dos empregados dentro das fábricas e nos sindicatos. A Volks e a Chrysler, por exemplo, repassaram listas de funcionários aos órgãos de segurança, às vezes com as respectivas fichas funcionais. Na semana passada, ambas negaram o envolvimento. A Volks ressalvou ter sido ¿sempre apolítica¿. A DaimlerChrysler alegou total desconhecimento, ¿portanto não temos comentários¿.

A associação de interesses empresariais com os da ditadura não foi peculiaridade brasileira. Ocorreu também na Argentina, depois do golpe de março de 1976. O objetivo foi sempre o mesmo: reduzir o risco de conflitos trabalhistas. A repressão tornou viáveis políticas de arrocho salarial.

Em Brasília o regime fixava os reajustes anuais de salários, proibia a contestação e os órgãos de segurança seguiam as reações do operariado com uma rotina de relatórios das indústrias. O Dops paulista acompanhou casos como o do metalúrgico Waldemar Rossi. Aos 37 anos contava oito meses de emprego na linha de montagem da Volks-Ipiranga quando foi a uma assembléia sindical. Ali propôs uma ¿operação-tartaruga¿. Não teve êxito, mas antes da jornada terminar estava demitido. No mesmo dia (11 de novembro de 1970), o Dops protocolou um relato da empresa, com a ficha funcional de Rossi.

Em Buenos Aires, nas semanas seguintes ao golpe, centenas de trabalhadores foram presos. Entre abril daquele ano e junho de 1978, a embaixada dos EUA reportou a Washington episódios emblemáticos da ¿grande cooperação entre gerentes e órgãos de segurança¿. Registrou a expectativa empresarial de que a ditadura intensificasse ainda mais a repressão ¿-¿minimizando o risco de greve nas indústrias¿ e de situações ¿fora do controle, como na GM¿.

As diferenças nos dois países ficaram por conta da ferocidade dos generais argentinos: prisões em massa, com dezenas de ¿desaparecidos¿ depois de sessões de tortura ¿ algumas realizadas dentro das fábricas onde as vítimas trabalhavam.